sábado, dezembro 17, 2011

Sérgio Godinho: 40 anos de canções (3)


Um olhar pela história da discografia de Sérgio Godinho, caminhando através de 40 anos de canções, desde o EP de estreia em 1971 ao mais recente álbum editado já este ano. Esta é a terceira parte de um texto originalmente publicado no caderno Q., do Diário de Notícias, a 4 de Novembro deste ano.

A canção política teve mais vincada presença na sua obra entre 1974 e 76. Mas não desapareceu nunca dos seus discos posteriores. Logo em Pano Cru (1977) essa mesma consciência interventiva marca posição no Homem Fantasma, com uma dimensão mais de crítica social, em Venho Aqui Falar, comentando o momento presente ou Lá Isso É, onde diz que “há partidos de direita que põem sempre a bola ao centro / mas quem os melhor fintar / é que vai marcar o tento”. Em Campolide (1978) aletra para Cuidado, onde se fala de caciques locais (“lá na terra havia um homem que mandava / toda a gente, um por um, pôr-se na bicha / e votar nele e se votassem lá lhes dava / um bacalhau, um pão-de-ló, uma salsicha”). Já Joguei Boxe, Já Toquei Bateria dá por sua vez conta, já em 1981, de um tempo de uma certa “normalização” da vida em Portugal, como que deixando para trás o entusiasmo ainda recentemente vivido. Esse é um momento sobre o qual, atento, reflecte ainda em Não Te Deixes Assim Vestir (1983), onde nos diz: Ai, Portugal / dar-te conselhos é bem pouco original / (mas) se realmente não quiseres querer-te mal / olha p´ra ti, ó Portugal / e não te deixes assim vestir”.

'Domingo no Mundo' (1997)
Entre a sua produção mais recente contam-se vários exemplos de canções de evidente texto político, desviando o gume da crítica dos espaços talvez mais ideológicos de outros tempos, mas não deixando de olhar as realidades do dia-a-dia do país em que vivemos. Domingo No Mundo, tema-título do seu álbum de 1997, foca em concreto a exploração do trabalho infantil, relatando que “na fábrica de fogo de artifício / houve, dizem, fogo posto / e um menino sonha a noite inteira / que perdeu no escuro o rosto”.

Em Não Respire, do mesmo álbum, aborda-se o drama do consumo das drogas duras. Numa canção que usa como dispositivo de construção do refrão o jogo de palavras que nos acompanha sempre que tiramos uma radiografia (não respire/pode respirar), o verdadeiro foco das atenções centra-se em versos que cantam que “Liberdade é só nome de avenida / longe fica o rio da impossível partida / um barco trancado na minha veia / e braços como aranhas enredados na teia”, concluindo depois que “sou só carne e osso / belo dueto / vou doar à pátria o coração e o esqueleto”.

Não menos “política” é a forma como se alerta contra a ignorância, o preconceito e a intolerância ao encarar a sida. “Desarmem o preconceito”, lê Sérgio Godinho num registo spoken word em As Armas do Amor, uma canção que assinalou o seu reencontro criativo com José Mário Branco em 1997, onde diz ainda: “o preconceito não tem estado civil / é casado com a morte / divorciado da vida / é viúvo de si mesmo / é solteiro e por junto separado / suicida”. Esta ideia de leitura, reforçando o peso das palavras, ganhou forma inclusivamente no modo como levou depois esta canção a palco, de papéis nas mãos, folheando-os, verso a verso, rasgando cada uma das páginas mal terminava a sua leitura.

Em Maçã com Bicho, do álbum Lupa (2000), critica os modelos vigentes das praxes académicas, onde questiona “é rastejando que se ascende aos tectos?”. No mesmo disco tece uma sátira às visitas oficiais dos políticos em Bem-vindo Senhor Presidente, em cujo refrão se escura “Bem-vindo senhor presidente do consenso capicua / sente sente / va! Aqui no sofá / a casa é sua! / um café? Cerveja já não há! / a casa é sua / vou buscar a vassoura e a pá / a casa é sua / e um banco corrido para estes senhores / Como é que se chamam? / Ah, acessores”. Com humor olha depois para o Portugal do nosso tempo ao dizer que “só neste país / é que se diz / só neste país”, refrão de uma canção originalmente nascida para a peça de teatro Portugal, Uma Comédia Musical e que depois teve nova versão (com o título Só Neste País) no álbum Ligação Directa, de 2006.

Já no novo Mútuo Consentimento, mesmo não focando nenhuma das canções do alinhamento num olhar estritamente político, não deixa de marcar, com algum humor, sinais do tempo que vivemos ao referir, em O Acesso Bloqueado, o “défice descontrolado” ou o “crédito mal-aparado”.

O passar dos anos não foi nunca sinónimo de um apagar de memórias destas canções. E até mesmo temas com mais vincada ligação a outros tempos políticos conheceram , ao longo dos tempos, janelas de (re)encontro com outras gerações. O “clássico” Liberdade marcou assim presença em vários alinhamentos de concertos, surgindo até em gravações ao vivo como foram os casos de Rivolitz (1998) ou 9 e Meia no Maria Matos (2008). Nesta mesma digressão, que se seguiu ao lançamento de Ligação Directa, A Democraica ou Arranja-me Um Emprego voltavam a entrar em cena. Por sua vez, mais pela relação instrumental (ligada às guitarras eléctricas) que a uma qualquer agenda temática, O Charlatão e Etelvina regressaram aos palcos depois de Domingo no Mundo.

'Pano Cru' (1977)
O amor não era o destino mais visitado pelos primeiros discos de Sérgio Godinho, mas foi desde sempre um dos temas centrais da sua obra. Eram “relativamente poucas as suas canções de temática amorosa” até 1977, como recorda Arnaldo Saraiva no livro que então dedicou às canções de Sérgio Godinho. Eram, da obra até então editada (ou seja, os álbuns entre Os Sobreviventes, de 1972 e Pano Crú, de 1977), “menos de um quarto da sua produção, ou seja, cerca de uma dúzia”. O autor verifica então uma atitude algo diferente da mais comum em muitos outros autores da canção moderna, reparando que, nas canções de amor de Sérgio Godinho “o amor não é um valor absoluto ou separado que resolva todos os problemas da existência – antes é um valor que só é possível obter ou realizar quando se têm ou querem outros valores”. O mesmo autor sublinha que, nestas canções, o amor é algo que exige esforço, luta e coragem, que tem de enfrentar contradições, que não é apenas motivo de alegria (mas também motor de dor, de angústia), que “exige discrição, pudor, naturalidade” e que, a finalizar, “não pede um tom pessimista, nem sublime, nem grave, nem solene – pode pedir até um tom jocoso, irónico simples, escarninho”. A sua visão do amor é, acrescenta ainda, “realista, profana e anti-religiosa” e repara que a sua concepção de amor “é coerente com a sua concepção da mulher, que põe em plano igual ao do homem”.

Entre as mais célebres das suas trovas de amor conta-se Mudemos de Assunto (do alinhamento de Campolide, álbum de 1978). Fala da separação, do fim do amor, espaço a que regressa em várias outras canções, aqui referindo a “tempestade, o que se teve de comum”, que é “aquilo que separa depois / e os barcos passam a ser um e um / onde uma vez quiseram ser quase dois”.

'Aos Amores' (1989)
Várias histórias de amor cruzam o alinhamento de Corresponências, disco de 1983 que nasce de uma série de parcerias com músicos brasileiros como Chico Buarque, Milton Nascimento, Novelli ou Ivan Lins. A face A do álbum de 1989 Aos Amores (que corresponde à primeira metade do seu alinhamento na versão em CD) apresenta também uma série de narrativas onde o amor é verbo conjugado. E numa delas, Que Lástima, Querida Fátima, apresenta-se a canção como tempo para devolver o sorriso a alguém que o perdeu em crise de amores. “Está combinado, esta canção vai durar só três minutos / de maneira que, vá lá / olhos enxutos”, canta, falando a canção não do amor ou da sua perda, mas de como ela mesma pode ajudar alguém a reencontrar um caminho.

E são muitas as reflexões sobre o amor nos seus discos mais recentes. Em Lupa (do ano 2000), por exemplo, retrata em Dancemos no Mundo uma história de amor separada pela fronteira política de dois países. “Isto é como tudo / não há-de ser nada / a minha namorada / é tudo que eu queira / mas vive para lá da fronteira // Separam-nos cordas / separam-nos credos / e creio que medos / e creio que leis / nos colam à pele papéis”, lança a canção, o desejo transcendo depois essa barreira física quando canta “Eu só queria dançar contigo / sem corpo visível / dançar como amigo / se fosse possível / dois pares de sapatos / levantando o pó / dançar como amigo só”.

Em 2006 Ligação Directa faz do amor um dos temas centrais de uma nova colecção de canções de Sérgio Godinho. O álbum abre inclusivamente com duas canções com a palavra amor no título. A Deusa do Amor e Às Vezes o Amor. Também o novo disco canta um “amor à primeira vista” em Intermitentemente ou o “agitar” da solidão no tema-título.

(continua)