domingo, dezembro 11, 2011

Sérgio Godinho: 40 anos de canções (2)



Um olhar pela história da discografia de Sérgio Godinho, caminhando através de 40 anos de canções, desde o EP de estreia em 1971 ao mais recente álbum editado já este ano. Esta é a segunda parte de um texto originalmente publicado no caderno Q., do Diário de Notícias, a 4 de Novembro deste ano.

Gravado em plena “primavera marcelista”, o primeiro disco de Sérgio Godinho nasceu contudo longe de Portugal. Tinha rumado à Suíça, para estudar psicologia, com Piaget. Mas sentiu outro chamamento e, como diria Jack Kerouac, partiu estrada fora. Passaria pela Holanda, pelo Brasil e mais tarde pelo Canadá (de onde regressaria em 1974, já depois da revolução), mas a mais importante das etapas criativas nessa fase da sua vida ganhou forma em Paris. Antes trabalhara num barco, na cidade viveu depois como veilleur de nuit, mais tarde integrando o elenco do musical Hair... E foi nos arredores da capital francesa, no Chateau d'Herouville, os mesmos estúdios onde os Rolling Stones ou Elton John gravariam discos por essa altura e onde José Mário Branco tinha registado o seu álbum de estreia Mudam-se Os Tempos, Mudam-se as Vontades (lançado em 1971) que nasceu Os Sobreviventes.

Convém antes de mais caracterizar o tempo político e social que assiste ao nascimento destas canções para compreender que força era essa que em si transportavam. O mapa nacional vivia assombrado pela Guerra Colonial, destino que Sérgio Godinho evitou ao sair do país. Por cá tinha ainda assistido à crise académica de 1962 e, já em Paris, ao Maio de 68 (que se revelaria marcante na sua formação pessoal). Uma nova ideia da canção como forma de expressar descontentamento e comentar o quotidiano não só marcava o terreno junto de grandes autores franceses (e recorde-se que foi em francês que Sérgio Godinho, que tocava piano e guitarra desde pequeno, começou a compor) mas também de novas vozes que em Bob Dylan encontravam um farol de ideias entusiasmantes.

'Romance de um dia na estrada' (1971)
O disco de estreia de Sérgio Godinho chegou a Portugal ainda em 1971 através, primeiro, das quatro canções editadas no EP Romance de Um Dia Na Estada (que a este tema juntava A Linda Joana, O Charlatão e Aeiou). O álbum veio pouco depois, já em 1972. Mas como então sucedia a tantos outros nomes de música feita com palavras incómodas para o regime, era coisa que se vendia às escondidas, disfarçadamente. Pedindo por vezes um nome diferente na loja, mas levando afinal o disco certo para casa. Isto porque, não bastasse a sua ligação a outros músicos que entretanto conhecera em Paris, entre os temas de Os Sobreviventes passava já uma evidente relação crítica para com o Portugal de então.

Essa consciência política não era contudo coisa recente, remontando mesmo aos dias em que ainda residia, com a família, no Porto. Atento, mas não necessariamente alinhado. “Pela minha parte eu era mais um observador crítico e um colaborador ocasional em coisas que me faziam sentido”, explicou em palavras reproduzidas em Cantores de Abril, livro de Eduardo M. Raposo (ed. Colibri, 2000). O autor acrescenta que “se na Faculdade de Economia do Porto estava já ligado a pessoas que eram contra o regime, essa ligação continua na Suíça, aqui com pessoas que estavam em circunstâncias semelhantes às suas, com as mesmas ideias, embora uns mais alinhados que outros”. Mas, e adverte no mesmo livro o músico, Sérgio Godinho definia-se como “um tipo com curiosidades”, ou “um beatnik, de certo modo, que passava pelo universo estrito da política e também, por outro lado, procurava outros sabores em realidades diferentes, mais vivenciais”.

Fruto desta consciência, e através das canções de Os Sobreviventes nascia assim, logo aos primeiros passos, a identificação de Sérgio Godinho como uma voz crítica do regime. Em Que Força é Essa observava as condições de trabalho de quem dava “muita força p'ra pouco dinheiro”. Por seu lado, em Maré Alta cantava: “aprende a nadar companheiro / que a maré se val levantar” clamando depois que “a Liberdade está a passar por aqui”. Como que sublinhando um tempo de oportunidade para fazer a mudança sonhada. Que parecia não estar já muito longe.

'Liberdade' (1974)
É natural que, em 1974, o discurso político, que fazia muitas das conversas do dia-a-dia de tantos portugueses, ganhasse expressão mais visível na música, não apenas de Sérgio Godinho mas de tantos outros nomes que representavam então a linha da frente de uma nova canção popular. É do álbum que editou esse ano o clássico Liberdade, que muitos conhecem como “a paz. o pão, a habitação, saúde, educação” que vive a urgência de um tempo de transformações, reconhecendo que “só há liberdade a sério quando houver / liberdade de mudar e decidir / quando pertencer ao povo o que o povo produzir”. Ou seja, traduzindo num plano concreto todo o sentido do poder de uma palavra. Liberdade.

Dos ecos directos do tempo presente o álbum À Queima Roupa fala ainda da tomada da terra pelas cooperativas em Pontos nos Is. Todavia, e apesar de celebrar o clima de mudança que o país vivia, as canções mostravam uma personalidade com sentido realista e atento. Em O Meu Compadre, alterta mesmo “vamos vamos / tomar cuidado / com promessas assinadas / em papel molhado”... E em Sul Norte Campo Cidade (do álbum de 1976 De Pequenino Se Torce o Destino) tece uma reflexão sobre a forma como o país se dividia então politicamente a Norte e a Sul.

As canções de À Queima Roupa, juntamente com outras de discos anteriores (como O Charlatão ou Maré Alta) tornam-se presença em várias das sessões de Canto Livre que caracterizam o novo Portugal musical pós-revolução. “Estas duas palavras traduziam a nova situação em que se encontravam os cantores de intervenção. O canto que tinha passado a fazer-se era um canto livre. Depois, haveria tempo para lhe aplicar outros qualificativos, de acordo com o seu grau de ligação ao projecto revolucionário”, descreve José Jorge Letria em A Canção Política em Portugal (ed. Ulmeiro, 2ª edição de 1999). Os “cantos livres” começaram por se realizar semanalmente, às sextas-feiras, no Teatro São Luiz, em Lisboa. Por ali passavam os nomes que davam voz a uma etapa em que a canção política fazia o protagonismo do cenário do Portugal musical de então. A eles juntaram-se ainda nomes vindos de outras paragens, como Pi de la Serra, Maria del Mar Bonet, Luis Llach... Como recorda ainda o livro A Canção Política em Portugal, houve então pedidos de colectividades e associações para levar esta ideia a outros pontos do país. Tanto que a expressão canto livre acabou mesmo por ser “quase um sinónimo de Abril” e “o nome de uma plataforma cultural que passou a agrupar” poetas, cantores, actores e músicos.

'A Boca do Lobo' (1975)
Pelo país, nessas sessões, umas mais bem organizadas que outras, Sérgio Godinho cantava essencialmente as canções de À Queima Roupa, mas também o Charlatão, Maré Alta ou Que Força É Essa... Cantava muitas vezes Pode Alguém Ser Quem Não É, Barnabé e mudava de registo com A Noite Passada. Recorda estas e outras sessões como sendo “muito precárias”. Eram chamados por comissões de trabalhadores, sociedades recreativas, associações de moradores... Socorriam-se uns aos outros, quando eram mais que um, ajudando-se entre si como suporte instrumental uns dos outros... Sérgio Godinho reconhece ter uma grande memória dessas sessões, mas delas nunca saía totalmente satisfeito (no plano musical e performativo, entenda-se).

Como tantos outros que haviam criticado e, cada qual à sua maneira, combatido o regime anterior, Sérgio Godinho vivia assim, activamente os tempos de mudança. Tal como então o fizeram José Mário Branco (através do GAC), Jorge Palma ou Paco Bandeira, participou (como autor) com uma canção no fortemente politizado Festival da Canção de 1975. Ali levou, na voz de Carlos Carvalheiro, A Boca do Lobo, onde se escutava “Anda aí, como se previa, a CIA / quem é que não desconfia”.

(continua)