1. Vale a pena ver o novo anúncio do PAP (Plano Automático de Poupança) da Caixa Geral de Depósitos (aqui em baixo ou no site da CGD). Vale a pena conhecer os seus ecos no mundo da publicidade e também os pontos de vista dos respectivos actores (Bruno Nogueira, José Pedro Gomes e Miguel Guilherme).
2. Não se trata, entenda-se, de seguir o moralismo simplista de alguns discursos que, automaticamente, começaram a circular na Net. A saber:
— não se trata de discutir a legitimidade de uma entidade bancária, pública ou privada, promover os seus produtos, mesmo (ou sobretudo) em tempo de tantas convulsões económicas;
— não se trata de lançar qualquer tipo de suspeita sobre os actores envolvidos, correspondendo às solicitações do mercado de trabalho de acordo com opções que só a cada um pertencem (o mesmo é válido para o universo das telenovelas: o horror que todos os dias espalham no espaço audiovisual português não pode ser encarado como uma "culpa" directa dos respectivos actores).
3. Trata-se, isso sim, de questionar a visão do mundo que o marketing nos propõe. Porquê? Precisamente porque vivemos numa sociedade que, todos os dias, "polemiza" os assuntos mais banais (um penalty mal assinalado num jogo de futebol pode ocupar horas de emissão televisiva...), omitindo, ou mesmo bloqueando, qualquer reflexão sobre o poderosíssimo marketing e o modo como a sua ideologia contamina tudo e todos, desde a percepção do mundo dos iogurtes até ao funcionamento das campanhas eleitorais.
4. O anúncio do PAP reforça, infelizmente, uma das componentes mais negativas da história recente do marketing em Portugal. A saber: a diluição das singularidades da comédia nos desígnios correntes da publicidade. Em boa verdade, há formas de comédia que passaram a subsistir apenas através da publicidade. Na prática, isto significa uma alienação total da energia cómica (e dos comediantes): o humor genuíno (mais ou menos talentoso, não é isso que está em causa) cedeu por completo a uma ideologia fundada nas noções de produto e rentabilidade.
5. No país de António Silva e Vasco Santana, eis mais um infeliz sintoma da nossa crise cultural: com excepções mais ou menos felizes, até mesmo o género cómico passou a existir contaminado pela ideologia do marketing e pela boçalidade de um discurso instalado numa visão economicista e instrumental de todas as relações humanas. Sendo a Caixa Geral de Depósitos uma entidade pública, este é mais um golpe indirecto, mas contundente, na estima que os portugueses nutrem pelo Estado.