sexta-feira, novembro 11, 2011

Momentos inesquecíveis


Foi uma noite de estreias. A da primeira vez que Momente foi escutado em Portugal, a da sua primeira audição pública no século XXI e do recurso a uma edição definitiva da partitura na qual Stockhausen trabalhara nos últimos tempos da sua vida. No palco estava Peter Eötvös (na foto) , um seu velho colaborador. E, na mesa, ao centro da sala, assegurando o desenho de som, o compositor português Pedro Amaral, que chagou também ele a trabalhar com o próprio Stockhausen. A Gulbenkian, que desde há muito criou uma relação entre o compositor alemão (que chegou a ter trabalhos encomendados pela fundação) e o público lisboeta, viu ontem o seu auditório consideravelmente bem recheado de gentes (de todas as roupas e todas as idades) para viver um momento da temporada de música 2011/12 que certamente ficará inscrito entre os mais memoráveis que ali registou.

Momente é uma obra aberta, que parte da visão do intérprete na concepção do modo de arrumar os “momentos” que a partitura implica. Vive portanto de uma soma a arrumar de fragmentos, de geografias sonoras e pedaços com sentido narrativo que a vivência em palco traduz numa experiência tridimensional que a audição em disco (mesmo interessante) nunca reproduz. Há toda uma carga física implícita na forma de viver esta música. Da migração de vozes pelo espaço do auditório no primeiro momento à impressionante transição de protagonismos do palco para a plateia e, depois, da plateia de volta ao palco, num “momento” de aplausos à hora do intervalo. Composta em inícios dos anos 60 e desenvolvida nos anos seguintes até alcançao a Versão Europa (de 1972, que vimos em Lisboa), Momente é uma obra que ensaia, além de uma demanda definitiva, de Stockhausen pelos espaços do serialismo, uma nova visão de música para cena, representando (juntamente com algumas outras peças de seus contemporâneos) importante espaço de reflexão de conceitos e formas que, eventualmente, terão reaberto caminhos que muitos poderiam julgar fechados, e que fazem da ópera (e demais expressões da música dramática) uma realidade vibrante nos dias de hoje.

Cruzando vários textos, do Cântico dos Cânticos a uma carta pessoal, Momente é uma obra que reflecte ainda uma dimensão pessoal e um sentido íntimo que garantem, entre sinais e formas que os sucessivos “momentos” vão apresentando, um espaço de ordem narrativa mais concreta (pena a opção pela projecção das legendas sobre as madeiras do fundo de cena, em alguns instantes com leitura difícil). Uma ode ao amor, podemos dizer de Momente. Correspondida em pleno pelos músicos (e destaque-se a impressionante presença de Julia Bauer). E por uma plateia que sublinhou com aplausos (estes já fora da partitura) o momento que ali vivemos.

O concerto repete hoje às 19.00 horas.


Em conversa: Pedro Amaral

O compositor Pedro Amaral foi o maestro assistente de Peter Eötvös nesta produção de Momente e assegura também o desenho de som do espectáculo. Esta, a seguir, é a transcrição integral de uma entrevista que me concedeu, e que usei para escrever o artigo “Uma carta de amor para vozes e orquestra” publicada na edição de ontem do DN. 

Porque é Momente descrito por vezes como um episódio de mudança na obra de Stockhausen? 
Há uma frase de Mary Bauermeister, a companheira de Stockhausen na época em que trabalhava no projecto de Momente, que descreve em certa medida o papel de transformação profunda desta obra: “se consegues compor um esquema tens de conseguir destruí-lo” (cito de memória). Esta era uma capacidade que Stockhausen não tinha até então, que ganhará através da composição de Momente e que irá marcar de um modo irreversível a sua música ao longo de toda uma década. Nos anos 50 Stockhausen e os seus colegas da Escola de Darmstadt, Boulez em particular, tinham elaborado cuidadosamente, etapa a etapa, o complexo sistema serial. Nessa evolução, que começa em 1951, vemos todas as categorias serem pensadas uma a uma, como um lego que se constrói e em que cada peça é escolhida de segundo os princípios cartesianos da dúvida metódica. A “unidade formal” vai, também ela, evoluindo e, em Stockhausen, cada fase dessa evolução é abordada numa obra paradigmática com um título explícito: Punkte é um paradigma da música Pontilhista, e quando a linguagem permite que a partir dos pontos, elementos de base, se elaborem “linhas”, “curvas”, etc. Stockhausen compõe Kontra-Punkte. Mais tarde essas formas simples – pontos, curvas, linhas – formam grupos mais complexos, e obra que marca esse momento culminante do sistema serial é intitulada Gruppen, “grupos” – uma das obras primas do repertório contemporâneo.

A primeira gravação de 'Momente'
A etapa seguinte é o alargamento radical da unidade formal a proporções muitíssimo mais vastas; ao grupo sucede o momento e a obra emblemática dessa nova e derradeira etapa intitula-se… Momente, “momentos”. Mas se recuarmos ainda à etapa anterior, a dos grupos – Gruppen – vemos que faltava uma última categoria para a linguagem serial estar completa: a forma. A uma linguagem baseada na ideia de centralidade, como a linguagem tonal, correspondera um sistema formal fechado; a um sistema doravante aberto, como o serialismo, teria de corresponder uma forma aberta. O problema é que o serialismo partia daquilo que Boulez definiu como um “princípio de não identidade”, ou seja, ao contrário da música tonal, onde o material musical é extremamente hierarquizado e diferenciado, a linguagem serial apoiava-se num princípio de não diferenciação. E assim são as primeiras formas abertas criadas no seio do serialismo. Mas quando Stockhausen compõe Momente, leva a forma aberta a um tal grau de riqueza e complexidade que já não é compatível com o “princípio de não identidade”; a obra propõe um conjunto de trinta momentos que podem ser encadeados de muitas maneiras diferentes, como ilhas que um viajante visite ao sabor do vento e das marés. Naturalmente Stockhausen aspirava a que cada uma destas “ilhas” fosse tão diferenciada quanto possível, que o viajante deparasse de cada vez com paisagem absolutamente diversa e única. E assim esbarra com a ideia de indiferenciação que era basilar no serialismo. E assim, com Momente, acaba verdadeiramente a época – a grande época – serial.

Edição americana em 1965
Há também uma dimensão muito pessoal nesta obra...
Por outro lado, há dimensões que Stockhausen colocou em Momente que nunca tinha abordado antes, nomeadamente uma perspectiva pessoal, biográfica, fortíssima. A base textual da obra apoia-se no Cântico dos Cânticos, essa apoteose bíblica, essa sacralização do amor. Mas além do Cântico temos passagens de uma carta de Mary a Stockhausen, e um verso de Blake, e a evocação de um ritual iniciático e sexual das ilhas da Melanésia – outra sacralização da relação amorosa. Momente é uma verdadeira carta de amor e está intimamente ligada ao encontro com Mary e à relação de amor que o compositor viveu com esta artista plástica e que o fez afastar-se da sua primeira mulher, Doris. O momentos “M” (de Melodie, melodias) são, de resto, um retrato musical de Mary, em particular a parte de soprano solo. Mas os momentos K (de Klang, som) são uma espécie de auto-retrato do compositor; e os momentos D (de Dauern, durações) são um espelho musical de Doris. As iniciais M, K e D ligam-se, assim, ao plano estrutural, mas Stockhausen nunca escondeu a simbólica onomástica: D de Doris, K de Karlheinz, M de Mary.

Gravação pela DG
Ter numa mesma sala um Peter Eötvös e um Pedro Amaral, ambos antigos colaboradores de Stockhausen (o que não omite o facto do compositor já não estar entre nós), de certa forma se assegura para o espectador uma continuação directa do seu legado? 
Peter Eötvös é o grande intérprete de Stockhausen. Conheceu-o cedo, enquanto aluno em Colónia, fez parte do grupo de Stockhausen, com quem fez centenas de concertos em todo o mundo, e a sua formação como músico ficou indelevelmente marcada pelo autor de Momente. Momente que Peter Eötvös preparou como maestro assistente de Stockhausen há quatro décadas. Como eu próprio fui agora seu maestro assistente nesta nova produção da obra, que representa a estreia da edição revista e corrigida pela própria mão do mestre... Conheci Stockhausen em 2001, aquando da produção do Hymnen mit Orchester no Royal Concertgebouw. Na qual participava como estudante de Peter Eötvös que, na época, queria transmitir a alguém da nova geração o conhecimento e a técnica específica na interpretação desta obra. Mais tarde trabalhei muito com o próprio Stockhausen, dirigi muitas das suas obras e tive a honra de ser apontado por ele como um dos seus intérpretes no documento em que o mestre preparava as comemorações do seu octogésimo aniversário, o que me surpreendeu muitíssimo e muito me honrou. Tudo o que posso dizer é que espero, com humildade, estar à altura da confiança que o mestre depositou em mim.

Ed. na Stockahsen Verlag
Quando começaram a trabalhar esta produção? 
Nesta produção da Fundação Gulbenkian os intérpretes excederam-se extraordinariamente. Comecei em Julho a preparação do Coro Gulbenkian, em conjunto com o maestro Jorge Matta. Fiz dezenas de ensaios e posso dizer com um grande orgulho que o Coro Gulbenkian está a conhecer nesta produção tão exigente, a todos os níveis, um dos seus grandes momentos. A sonoridade colectiva, a precisão, a inventividade individual que esta estética exige estão representadas por um conjunto de 48 cantores admiravelmente envolvidos neste projecto, nesta obra. Foi uma grande felicidade trabalhar com eles. E o resultado está à vista. Comecei a preparar a orquestra há três semanas – orquestra que é apenas uma pequena parte da Orquestra Gulbekian já que a obra integra um conjunto instrumental muito peculiar, quatro trompetes, quatro trombones, três percussões e dois órgãos Hammond. A integração entre orquestra e coro, complexa nesta linguagem e com estes timbres específicos, funciona admiravelmente, e eu creio poder dizer que vamos assistir a uma das melhores produções de sempre desta que é, provavelmente, a obra prima de Stockhausen.

Versão de 1998
Esta obra teve em concreto algum papel importante na sua formação pessoal? 
Como maestro a experiência de preparar esta obra traduziu-se numa aventura absolutamente extraordinária e numa imensa aprendizagem. Como compositor eu sempre fui mais bouleziano, sempre pratiquei uma linguagem musical mais depurada, uma sintaxe mais estrita – foi essa a própria base da minha formação. Momente tinha sido uma obra marcante para o meu professor de composição, Emmanuel Nunes, e eu sempre desejei estudá-la a fundo, por isso a escolhi como objecto central da minha tese de doutoramento quando terminei a minha formação no Conservatório de Paris e desejei regressar aos estudos teóricos. A arquitectura formal de Momente, assente na ideia de obra aberta dos anos 60, deixa uma marca indelével no pensamento musical contemporâneo. Mas eu creio que a influência mais profunda da obra no meu próprio trabalho é mais tardia: agora, que estou a compor a minha segunda ópera, há aspectos na escrita vocal, por exemplo, e na abrangência do vocabulário musical que certamente não teriam emergido em mim sem um conhecimento e uma vivência profunda de Momente.

PS. Este post está ilustrado com as capas das cinco edições discográficas de Momente.