Em tempo de assinalar os 30 anos da histórica actuação dos Heróis do Mar no Rock Rendez Vous a 25 de Novembro de 1981, uma caixa é agora lançada juntando a sua obra em disco e vídeo. Aqui fica uma entrevista com Rui Pregal da Cunha, que serviu de base ao artigo ‘Cinco soldados que marcaram a nossa pop’ publicado na edição de 22 de Novembro do DN.
Os concertos de 1981 no Rock Rendez Vous (RRV) fazem parte de uma quase mitologia pop à la portuguesa. Como recorda essas noites?
Engraçado como a nossa estreia passou a ser vista como uma daquelas coisas tipo "eu estava lá" mas há quem confunda esses dois primeiros com o 3º e 4º, também decorridos no RRV, com os irmãos Pêra vestidos de beduínos a ajudar nas mudanças de instrumentos. O quinto concerto é em Leiria com o Serge Thomas do Actuel a convidar-nos para umas noites no Rex em Paris. Acho que o burbulhar e o latejar dessa primeira subida a palco só se acalma já na Gália. Uma espécie de rush maluco que nenhuma outra coisa pode alguma vez produzir.
Esperavam que a imagem do grupo gerasse tamanha controvérsia?
Não, na verdade até acho esse brouhaha um pouco tricoso. Aqui aparecem cinco rapazes a fazer aquelas canções e a imprensa comenta a indumentária, whoa, quão gay é essa situação? Os Dexy [Midnight Runners] e os ACR [A Certain Ratio] já o tinham feito. O Giorgio Armani e metade dos outros designers italianos tinham o paramilitar como tendência masculina nessa estação. Retratava o nosso som, o qual intitulámos de disco-militar, nunca nos passou que isso e as patilhas (que eu não tinha) poderiam ser vistas como algo passível de critica.
'Música Moderna' (1979) |
Os Faíscas eram uma banda punk, vieram numa altura em que ainda nada estava a postos. Mas já com o boom do Rock português em plena erupção, o Música Moderna dos Corpo Diplomático é um disco fantástico e que serve, de certa forma, como test drive de certas coisas implementadas pelos Heróis logo a seguir indo aqui o destaque para essa preocupação pop num contexto de música eléctrica cantada em português.
Som e imagem destacavam os Heróis das demais bandas daquele tempo. Sentiam-se uma carta fora do baralho ou integraram-se bem no emergente panorama pop/rock do Portugal de então?
Integrávamos uma corrente do rock nacional porque assim o era suposto, era esse o rótulo. Mas a vontade de showmanship era elevada e muito trabalhámos para subir a fasquia, para elevar as vozes onde o silêncio parecia por vezes mais bem vindo.
Porque foram precisos mais de seis anos após a revolução para que a cultura pop cativasse uma nova geração de portugueses?
A revolução veio seguida de um tempo em que quem assim o quis pôde viver o que lhe tinha sido proibido, os 60s e os 70s. Assim a década seguinte começou com uma sensação de novo despertar, raiando a aurora de uma era verdadeiramente revolucionária.
Como se podia demarcar uma identidade própria (ou seja, portuguesa) numa música cujas matrizes eram claramente de importação (e então mais inglesas que americanas).
A forma de cantar a nossa língua e o léxico escolhido para o fazer dentro da música eléctrica, os instrumentos recuperados, dos bombos aos paulitos, e a demanda constante pela surpresa que repetidamente disparava em direcções diferentes, do cançonetismo à electrónica ou às raízes africanas.
O que vos estimulava criativamente? Que referências vos entusiasmavam e que ideias queriam projectar?
Grandeza, aquela desmedida epopeia vivida sempre por quem tem de produzir e inventar. Do Kaguemusha às pranchas do Steve Ditko, do Bandarra ao Buckaroo Banzai, do Travadinha ao Lopes Graça. Quisemos sempre representar um país almejando modernidade mas pleno de tradição.
'Amor' (1982) |
Acho que pós-Amor sempre houve uma clivagem assumida entre esses dois modos: por um lado o álbum, sempre mais experimental, trabalhos de estúdio, cerebralmente mais compostos. Por outro os 12", formato privilegiado por estes 5 rapazes, como suporte preferenciado no panteão da música de dança numa decisão consciente nesse diferencial entre os LPs e estes amuse bouche de pop veraneante. Numa perspectiva lafontaineana este era o nosso lado de cigarra enquanto que os longa duração mostravam a faceta formiga, mais complexa e obreira.
O sucesso do Amor (single de 1982) definiu um modelo que vos tenha eventualmente conduzido rumo a um caminho do qual surgiram depois o Paixão e o Alegria?
Eram outros tempos mas o que poderemos sempre agradecer é o facto de nunca nos terem pedido assumidamente para desencantarmos álbuns repletos de Amores e Paixões. O sucesso do Amor põe o grupo definitivamente na ribalta, mete as miúdas aos pulos (e por sinal o resto dos familiares), cala algumas bocas da reacção, leva-nos aos prémios e à consagração mas deixa uma lâmina a pairar sobre o pescoço.
A ideia de fazer uma pop para dançar era discutida internamente ou a versão nocturna do Amor, por exemplo, foi um feliz acaso?
A Versão Nocturna feita para o lado b do 12" do Amor é feita a la Tom Moulton, com os cinco à frente da mesa de 24 canais, cada um encarregue de umas quantas pistas, ligando e desligando em sincronia, tudo a passar para uma fita de 1/2 polegada que se tornava ao fim o master para ser editado com tesoura e fita cola, invertendo a sequência dos loops recriados. Deu-nos um gozo tremendo.
'Macau' (1986) |
Quando a nossas aventuras nos levaram a esse derradeiro bastião do Império o grupo estava já num impasse criativo, essa viagem veio trazer novo alento e novas inspirações. Macau recebeu o filho pródigo, que lá não ia desde os quatro anos de idade, e os meus companheiros sónicos de braços abertos e uma estadia de dez dias transformou-se num mês repleto de sensações novas.
Fizeram do fado uma ideia pop. Como chegaram a essa canção [Fado foi um single editado em 1986]?
As nossas canções são muito visuais, "dois homens parados e uma linda luz" é nitidamente uma epifania algures numa pequena cidade do interior, quase que arriscaria a dizer algures no Alentejo. O fado é pop, isso já nós sabemos hoje, na altura arriscámos simplesmente em fazer o que para nós se assemelhava como tremendamente óbvio, incorporando o que era nosso e assim trazendo mais nuances ao nosso som.
Africana [o último single dos Heróis do Mar] não deixa de ser outra forma de expressão de uma identidade pop portuguesa (sendo que carregamos séculos de uma experiência africana a que, muitas vezes, não damos visibilidade em consonância com a sua relevância social e mesmo antrolpológica)...
No primeiro disco o respeito pela influência africana sentida na capital era tão óbvia que até a revista Actuel percebeu isso. A Africana é um fechar do círculo, uma homenagem à "Dona Chica" e uma parceria com o seu autor, o cantor angolano Waldemar Bastos.
Era inevitável o fim para os Heróis do Mar depois do quarto álbum?
Os Heróis do Mar poderiam ter acabado muitas vezes antes disso. Tiveram o trajecto que tinham mesmo de ter e no findar da década que os havia revelado fecharam a loja.
De que forma os vossos primeiros projectos a solo pós-ruptura deram continuidade (ou contrariaram) os caminhos lançados pela aventura dos Heróis do Mar? Falo dos LX-90, dos Madredeus, dos discos a solo do Carlos Maria... Mais tarde até mesmo a Ovelha Negra do Paulo Pedro Gonçalves...
Os cinco soldados mencionados no álbum Mãe eram pessoas que trabalharam para um fim comum mas tinham vontades e expressões autónomas. O que os juntou foi também o que os separou. Mesmo assim podem-se sentir variadas marcas da banda em todos esses projectos.
Porque nunca se reuniram? E alguma vez o poderão fazer?
Preferimos continuar amigos uns dos outros e dia 25 deste mês iremos todos comemorar essa entrada no palco do Rock Rendez Vous há 30 anos. Guitarras, cantores, trompetes, tambores. Paixão. E mais do que um punhado de canções que ficam para a história. Afinal valeu a pena.