sábado, novembro 05, 2011

A crise na televisão (e a televisão da crise)

THOMAS EAKINS
Criança a brincar, 1876
Em televisão, muitas vezes, a "crise" já não é um tema, mas um emblema... De quê? Da própria televisão que se quer fazer passar por uma entidade imaculada, acima (ou fora) de todas as convulsões que retrata — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Novembro), com o título 'A crise... qual crise?'.

A crise, a crise, a crise... De tão repetida, a palavra “crise” instalou-se no quotidiano televisivo como uma evidência que já quase ninguém questiona. Como se a discussão das suas incidências nos dispensasse de reflectir sobre as linguagens que dela se apropriam. Que é como quem diz: de que falamos quando falamos de crise? E sobretudo: como é que falamos?
A última edição de O Eixo do Mal (SIC Notícias) trouxe um saudável contributo para essa reflexão sobre as linguagens, muito para além das diferenças e contradições que os seus participantes exibem (e que, com maior ou menor felicidade, constituem matéria vital do próprio programa).
Falava-se das pensões vitalícias de alguns membros da classe política, tema que, além do mais, não pode ser reduzido a uma espécie de “tiro aos patos” típico do jornalismo (televisivo ou não) especializado naquilo a que chama “denúncia”. Aliás, como foi recordado, houve membros da classe política, incluindo José Sócrates e Pedro Passos Coelho, que recusaram tais pensões.
Em todo o caso, uma das questões de fundo que o programa permitiu identificar excede, e muito, a mera “justiça” ou “injustiça” que possamos reconhecer em tais pensões (do meu ponto de vista, excede mesmo a vulgar hierarquização de ordenados, como se os mais altos fossem sintoma automático de “corrupção” e os mais baixos um índice inquestionável de “candura”). Na sua intervenção mais longa, Pedro Marques Lopes teve a oportunidade de formular tal questão, perguntando se a mediatização histérica (a expressão é minha) destes números não estará a contribuir para um processo dramático de fulanização da politica que, em última instância, só pode fragilizar a democracia e os seus valores mais básicos.
O Eixo do Mal deixou uma ideia muito simples, todos os dias secundarizada por muitos agentes televisivos: a de que não é possível pensar ou repensar a vida politica sem ter em conta as formas de percepção elaboradas ou induzidas pelos meios de comunicação social, com destaque inevitável para a televisão. Porque, afinal de contas, nos tem faltado a disponibilidade para reconhecer que a crise que estamos a viver é também uma crise de valores de vida, numa palavra, cultural.