domingo, outubro 30, 2011

Tele-Kadhafi

LUIS BUÑUEL / SALVADOR DALÍ
Un Chien Andalou (1929)
Em televisão, quantos são os jornalistas que já deixaram de pensar nas imagens que difundem e comentam? Infelizmente para todos nós, o tratamento noticioso da morte de Kadhafi voltou a a confirmar que o não-pensamento é mais forte que tudo o resto — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 de Outubro), com o título 'Pornografia de Kadhafi'.

As imagens do espancamento de Muammar Kadhafi e da romaria em torno do seu cadáver voltaram a desencadear o pior das televisões e, em particular, o pior do jornalismo que se faz no espaço televisivo (nacional e internacional).
Por mais que se queira colocar o problema no seu domínio específico (que é o domínio das linguagens), há nele uma dimensão friamente humana. Mesmo resistindo à sua banal fulanização, importa perguntar: que pensam os jornalistas que apresentam de forma absolutamente abjecta, como se estivessem num mercado de obscenidades, a degradação de um corpo, para mais filmada do ponto de vista de uma turba destruidora? E como é que esses jornalistas avaliam o facto de tratarem com o mesmo entusiasmo a morte de Kadhafi ou o rebentamento de uma conduta de água em Alguidares de Baixo?
Falemos de violência. Entenda-se: de violência televisiva. Há uma demagogia militante, insultuosa da inteligência de qualquer espectador, que lida com tudo isto em nome de uma suposta verdade transcendental: aquilo que está em jogo, neste caso o fim de um ditador, legitimaria todos os desmandos de linguagem. Na prática, tal demagogia não hesitará em sugerir que tentar pensar tais desmandos pode ser um sinal de cumplicidade com as atrocidades do regime de Kadhafi.
O que está em jogo é bem diferente. Tem a ver com o facto de continuarmos a assistir a uma informação com muitas componentes pornográficas, promovida como se o seu trabalho fosse a transcrição de um evangelho jornalístico cujos métodos e narrativas não podem ser questionados.
Que é, então, a pornografia? Um sexo dentro de outro sexo? Talvez, por vezes. Mas apenas algumas das vezes: a existência pornográfica das imagens tem a ver com essa violência que transforma o cadáver de um homem num ritual audiovisual em que apenas se adora a equívoca autoridade de um sistema de comunicação. Além do mais, parece que, em televisão, são cada vez menos os que sabem que nenhuma imagem existe fora de um contexto. Será que ninguém viu Blow-up (1966), de Michelangelo Antonioni? No limite, a mesma imagem, em contextos diferentes, pode ser grosseira ou sublime.