Como lidar com a saturação de links, circuitos e respectivas viroses? Como enfrentar a doença num mundo assim saturado? Contágio, de Steven Soderbergh, é um filme sobre tais labirintos – este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Outubro), com o título ‘Os nossos tempos difíceis’.
O nosso dia a dia tornou-se obrigatoriamente mediático: compreender o mundo à nossa volta passou a ser uma arte de decifração das suas representações audiovisuais. Mais do que isso: essas representações confundem-se muitas vezes com a “coisa” representada, de tal modo vivemos num imaginário televisivo de mil e um artifícios, heroicamente empenhado em fazer-nos crer que as suas câmaras têm o poder divino de desnudar o “acontecimento” para além de qualquer ambiguidade e, sobretudo, de qualquer réstea de pudor.
Tempos difíceis, portanto. Tempos, sobretudo, em que o romanesco social de Charles Dickens já não basta para lidarmos com os medos que nos habitam. O novo filme de Steven Soderbergh nasce da consciência de tal dificuldade: Contágio não é apenas um notável exercício cinéfilo, tocado por essa contida subtileza que caracterizou algumas fábulas apocalípticas dos anos 50 (lembremos The Invasion of the Body Snatchers, do grande Don Siegel); ao contar a história de um vírus que, em poucos dias, ameaça todo o planeta, Soderbergh dá-nos também a ver a imensa fragilidade da nossa querida aldeia global.
Curiosamente, o filme possui a fluência de um telejornal (menos a histeria!). Contágio encena o muito provável fim do mundo com a gélida serenidade de quem observa a geometria de um paciente jogo de snooker: cada acontecimento faz ricochete no acontecimento seguinte e, subitamente, compreendemos que a civilização das comunicações instantâneas, das redes sociais e das notícias “em tempo real” inventou também as condições da sua cruel desagregação. Será preciso acrescentar que a contundência e, sobretudo, a precisão deste olhar faz de Contágio um filme visceralmente político?