O realismo continua a manifestar-se na sua magnífica pluralidade: neste caso vindo de terras americanas e britânicas – este texto foi publicado no Diário de Notícias (16 Outubro), com o título 'O realismo de Soderbergh e Loach'.
Pensar o realismo das imagens (e dos sons) é coisa que não está na moda. Todos os dias massacrados pela informação televisiva “em tempo real”, somos impelidos a não pensar, a não olhar, a não questionar o simples facto de qualquer imagem (ou som) pressupor um ponto de vista, quer dizer, uma forma específica de apropriação do mundo à nossa volta.
Aliás, o que é isso de “tempo real”? Como supor que há uma espécie de verdade intrínseca que se reproduz ad infinitum apenas porque estamos a assistir a um directo televisivo? Porque é que, todos os dias, se mascara o facto de uma imagem envolver algum tipo de responsabilidade? E por que se quer fazer crer que um ser humano de microfone na mão, a olhar para uma câmara, existe como um indiscutível dispositivo de verdade?
Felizmente, ainda temos cinema para nos ajudar a lidar com tais questões. Sobretudo para nos permitir alguma distanciação face ao alarmismo militante que tomou conta da informação televisiva. Esta semana estrearam-se mesmo dois filmes que, para além de todas as suas diferenças temáticas e estruturais, reflectem uma mesma exigência realista. São eles o americano Contágio, de Steven Soderbergh, e o britânico Route Irish/A Outra Verdade, de Ken Loach. O primeiro, retomando um modelo de thriller enraizado na tradição da ficção científica da década de 50, encena uma situação de pânico planetário provocado pela proliferação de um vírus desconhecido e letal; o segundo segue a trajectória de dois homens de Liverpool, combatentes contratados na guerra do Iraque.
De que falamos, então, quando falamos de realismo? Exactamente do contrário do pueril naturalismo televisivo. O efeito de real nasce, não de qualquer “transcrição” neutra, mas de um elaborado trabalho narrativo que começa no visível (da vibração dos corpos à especificidade dramática dos objectos mais secundários) e passa por todas as nuances dramáticas (as relações entre personagens recusam qualquer espartilho moralista típico de telenovela). Soderbergh consegue, assim, filmar os circuitos tecnológicos do nosso presente como algo que não pode ser separado dos valores sociais e do nosso entendimento da politica, enquanto Loach nos confronta com os sintomas da geopolítica muito para alem de qualquer visão maniqueísta.
Não deixa de ser curioso referir que, no caso de Soderbergh, o impulso realista se tornou inseparável de um continuado interesse pela utilização das mais modernas câmaras digitais: lembremos Bubble (2005), insólito retrato de uma cidadezinha esquecida da América profunda, ou ainda o espantoso Che (2008), uma saga intimista sobre Che Guevara. Loach, por sua vez, limita-se a manter uma obstinada fidelidade aos pressupostos do realismo britânico que, desde finais da década de 60 (Poor Cow, Kes), o mantém como um dos autores emblemáticos de uma das mais sólidas tradições da produção cinematográfica europeia.