Globalmente reconhecimentos como os pais da música pop electrónica, os Kraftwerk estrearam-se num palco português no Coliseu dos Recreios (Lisboa), a 2 de Abril de 2004. Fundador, em 1969, dos Kraftwerk, Ralf Hütter, habitualmente pouco dado a entrevistas, falou ao DN na véspera do concerto. Esta entrevista foi publicada na edição de 2 de Abril de 2004 do DN.
Ao fim de mais de 30 anos de actividade, qual é o motor que faz ainda andar os Kraftwerk?
Creio que a aerodinâmica, a dinâmica, a energia dos Kraftwerk e uma certa fascinação pelos sons electrónicos. Temos o nosso próprio estúdio, o Kling Klang Studio, que é como que um instrumento para os Kraftwerk. E agora, no seu novo formato digital, é mais portátil, pode viajar... Pela primeira vez podemos tocar a nossa música em sincronismo com gráficos gerados por computador ou imagens vídeo, pinturas electrónicas... Tudo o que a tecnologia hoje permite! Estamos muito felizes porque nesta digressão mundial, podemos apresentar, finalmente, as coisas que queremos segundo uma visão que há muito tínhamos. Essa visão é, agora, para nós, uma realidade.
Quer isso dizer que a tecnologia do século XXI deu finalmente resposta para velhas ânsias vossas?
Exactamente. Deu-nos ferramentas para poder tornar reais certas visões nossas. E também mobilidade, movimento... Sempre nos interessámos bastante pelo movimento, daí a conhecida velha fascinação pelo ciclismo. Movimento... Movimento...
De que maneira a tecnologia mais recente vos obrigou a encarar de outra formo vosso trabalho musical? Hoje há ferramentas que não existiam nos anos 70 e 80...
Eu e o meu amigo Florian Schneider criámos o nosso Kling Klang Studio em 1970. Despendemos então muito tempo na sua construção para que assim conseguíssemos ser independentes e autónomos. Mas os nossos primeiros sintetizadores eram enormes e estavam constantemente a desafinar. Eram muito caros... O nosso primeiro sintetizador foi tão caro como o meu Volkswagen, que é o que está na capa de Autobahn. Sendo estudantes, tínhamos então os nossos problemas naturais... O Florian desenvolveu então o nosso primeiro instrumento electrónico de percussão, a partir de um outro órgão meu. Um amigo nosso, que era pintor, trabalhava connosco pintando as capas dos discos... Envolvíamo-nos em inúmeros projectos além da música, num contexto multimédia electrónico. E agora estamos a fazer a estreia mundial do nosso protótipo móvel Kraftwerk 2002. Tocámos em Paris, a cidade da música, e depois passámos pela Austrália, Japão... Em Fevereiro começámos a digressão mundial de 2004 na Escandinávia, seguindo depois para o Reino Unido e a Alemanha, onde não tocávamos há 13 anos. Hoje podemos viajar e ser como pilotos de ensaio para software electrónico relacionado com a música. Continuamos, hoje, a trabalhar com o mesmo engenheiro musical que nos acompanha há mais de 20 anos, desde o The Man Machine... É um processo de continuidade...
Acolheram com agrado a entrada em cena do sampler?
Tivemos o nosso primeiro sampler nos inícios dos anos 80. Ainda não eram de grande qualidade. Eram mesmo lo-fi! Mas tinham o seu charme. No passado tínhamos trabalhado com fitas, que cortávamos com lâminas para gerar padrões, tal e qual fizemos no Metal on Metal, no álbum Trans Europe Express. Tentámos ser sempre independentes dentro do nosso contexto. Hoje em dia temos os instrumentos.
Isso faz-nos muito felizes. Esperámos bastante tempo por um regresso vosso aos discos.
Havia alguma ansiedade entre vós enquanto o terminavam?
Não. Ao mesmo tempo estivemos a trabalhar na adaptação aos formatos digitais de toda a música dos Kraftwerk. Tínhamos fitas muito antigas que se estavam a degradar e havia muito trabalho para fazer. Estivemos a transformar 33 anos de trabalho de arquivo dos Kraftwerk em formato digital. Hoje todos os sons originais estão disponíveis e vamos brevemente lançar versões remasterizadas de todos os nossos álbuns desde Autobahn. Essa edição vai chamar-se The Catalog, em alemão Der Katalog. São gravações digitais de alta qualidade. E o grafismo dos discos vai incluir ideias que não pudemos usar no passado.
Como é que têm reagido perante tantos anos sucessivos de contínuos elogios à vossa música?
Isso é muito positivo. É um feed back muito positivo, é uma energia que nos é devolvida, vindo das mais diversas culturas e contextos. Vêm de Tóquio, da Bélgica, de Detroit... De situações hi tech...
Um elogio de David Bowie em 1974 ou de um Aphex Twin em 90 desencadeia reacções diferentes entre vós?
Quando começámos, em 1968, éramos estudantes e não tínhamos acesso à cena musical. Tocávamos, então, em festas de estudantes e em galerias de arte, e aí a nossa música era sempre bem-vinda...Houve, com o tempo, respostas muito positivas de outros artistas que nos deram outro tipo de feed back. E um incentivo a continuar...
Ainda hoje estão atentos à música electrónica que nasce além das paredes dos estúdios Kling Klang?
Sim, bastante. Quando viajamos, seja para concertos ou nem por isso, saímos com amigos e vamos a clubes onde ouvimos a música de dança electrónica que ali se toca. O som do ambiente também nos interessa. As nossas orelhas são como microfones, e captamos ideias nas nossas experiências do dia a dia.
O vosso site na Internet aposta claramente numa linguagem que promove a interacção. Como desenvolveram as ideias que ali aplicam?
Nós desenvolvemos entre nós todas as ideias, elaboramos uma espécie de script, e temos depois quem esteja a trabalhar directamente com os programas de computador, a desenhar em flash... Como vê estamos envolvidos em todos os aspectos dos Kraftwerk. Fazemos as capas dos álbuns, pinturas, gráficos de computador, fotografias...Os Kraftwerk são um conceito total. Faço isto com o meu amigo Florian Schneider [o músico entretanto afastou-se do grupo] há mais de 30 anos. O Mr. Kling e o Mr. Klang...Tudo o que está em redor dos Kraftwerk é uma arte total.
Porque houve sempre uma certa aura de mistério em redor dos Kraftwerk, sobretudo na imprensa musical dos anos 70?
Talvez porque as pessoas não nos compreendiam...
Construíram então a identidade do grupo numa espécie de oposição à iconologia tradicional do rock'n'roll...
Tudo veio do nosso trabalho em estúdio, o nosso trabalho musical.Inventámos nos anos 70 um conceito a que chamámos a semana de 168 horas.
Trabalho e mais trabalho...
Sim, é a única coisa que fazemos. E quando não estamos a trabalhar em coisas relacionadas com os Kraftwerk gostamos de andar de bicicleta, que nos parece envolver o mesmo nível de energia que a criação musical. E é algo que aponta sempre em frente.
Gostam mais de se apresentar ao vivo num palco ou de passar horas a trabalhar no estúdio?
Gostamos das duas coisas. Tudo tem a ver com Kraftwerk, e o conceito é o de trazer à vida todas as nossas ideias audiovisuais. E as pessoas compreendem. As evidências falam por si. Caso contrário estaríamos a trabalhar em literatura. Mas a verdade é que escrevemos poucas palavras nas nossas letras. Usamos apenas palavras-chave.
Podemos esperar uma edição em DVD desta digressão?
Sim, estamos trabalhar nisso mesmo. Vamos tocar até Julho, e depois temos convites para fazer festivais. No ano passado fomos convidados para a Volta a França e estávamos por lá ao mesmo tempo que acabávamos o trabalho no álbum. O disco saiu quando a Volta à França chegou ao fim.
Vamos esperar muito tempo por um próximo disco?
Mal acabe a digressão voltamos ao estúdio para começar a trabalhar em música nova...