sábado, outubro 22, 2011

Carlos Queiroz "contra" António Lobo Antunes...

Qual é a relação entre António Lobo Antunes e Carlos Queiroz, ex-treinador da selecção portuguesa de futebol?... Eis um mistério que a linguagem televisiva transforma em fascinante divagação filosófica... Fascinante e "tremenda", cruzada com a bolinha vermelha de Apocalyspe Now e a comovente inocência de Pretty Woman — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Outubro), com o título 'Uma tremenda epifania'.

A abrir a transmissão do Liverpool-Manchester United (SportTV), o comentador entra no tom ansioso de quem tem coisas catastróficas para revelar; aliás, ao longo do jogo aplicará várias vezes o adjectivo “tremendo” para classificar diversas ocorrências. Logo nos primeiros segundos, proclama, entusiasmado: “... na altura em que se ouve o mítico We’ll Never Walk Alone”. Convém, no entanto, corrigir o simpático eufemismo: não se ouve porque o comentador não se cala.
Seria apenas um detalhe involuntariamente cómico se não fosse um sintoma da incapacidade de escuta que domina o espaço televisivo (muito para além dos directos do futebol). “Continuamos a olhar sem ver”, disse António Lobo Antunes em entrevista a Fátima Campos Ferreira (RTP1), resumindo de forma precisa a miséria da nossa cultura televisiva.
Disse mais o escritor de Tratado das Paixões da Alma. Perguntou, por exemplo: “Porque é que há tanta novela, porque é que há tanto programa mau?”. E perguntou também: “Porque é que não queremos que as pessoas sejam cultas?” Lembrando a nossa baixíssima taxa de leitura, referiu ainda que “aqui é tudo feito para as pessoas não lerem”. E citou a Suécia, Noruega e Alemanha, lembrando: “Os países mais cultos da Europa não estão em crise”.
Foram palavras suficientemente cristalinas (ou “polémicas”, como gosta a maior parte da informação televisiva) para merecerem algum destaque em qualquer canal. Mas não: a divertida especulação de Carlos Queiroz, garantindo que com ele a selecção portuguesa de futebol já estaria apurada para o Euro2012, teve honras jornalísticas (?) que António Lobo Antunes não mobilizou.
Entretanto, revejo Pretty Woman (RTP1), pequena pérola da comédia americana. Numa rara epifania, vislumbro o rigor científico do nosso sistema: Apocalypse Now, à uma da manhã, tem uma bolinha vermelha no canto do ecrã; Pretty Woman, a meio da tarde de domingo, não tem... Eu acho bem. A sério. Haverá fábula mais infantil que a história do homem (Richard Gere) que encontra o amor no regaço de uma prostituta (Julia Roberts)? E só posso reconhecer que a nossa cultura televisiva é uma coisa tremenda.