quinta-feira, setembro 01, 2011

Um silêncio pouco socrático

RICHARD AVEDON
O Apicultor, 1981
1. É tempo de voltar a falar de José Sócrates. Entenda-se: da esquemática função mediática (predominantemente televisiva) que lhe foi atribuída. E da brutal lógica de demonização que a acompanhou. Mesmo quando o próprio se remeteu ao silêncio, o país viveu, longos e trágicos meses, dominado por um delírio de caça às bruxas (à bruxa, aliás). Deixou-se de falar de governação e política. Em boa verdade, passou a insultar-se qualquer possibilidade de pensar tais questões. Mesmo a mais cândida sensatez (do género: “Discutamos a governação do PS, mas evitemos polarizar todos os males portugueses, desde os tempos dos Descobrimentos, na figura de uma pessoa...”), mesmo essa básica tentativa de resistir à estupidez pela estupidez era de imediato rotulada de sinistra cumplicidade com os desígnios mais diabólicos da maldição socrática.

2. É tempo de, pelo menos, perguntar porque é que o nome de José Sócrates não surge, todos os dias, relançado no espaço mediático. Para quê? Para ajudar a enunciar uma pergunta tão cândida como esta: se mesmo não fazendo nada, José Sócrates era o monstro quotidiano de uma catástrofe mais que nuclear, porque é que o governo de Passos Coelho nos vai dando, todos os dias, notícias de inequívoca contundência – susceptíveis de afectar o futuro de, pelo menos, mais três gerações – e esse espaço mediático (predominantemente televisivo) digere tudo isso com esfíngica serenidade? Porque é que todas as angústias do país estão polarizadas, não na actividade governamental, mas em dramas de poético fascínio como a possibilidade de os árbitros de futebol andarem a prejudicar o Sporting?

3. Seria igualmente estúpido supor, ou fazer supor, que a maioria da informação (predominantemente televisiva) se uniu para difamar José Sócrates, colando-se agora, por pura cobardia intelectual, ao governo de Passos Coelho. Seria, além do mais, uma maneira cínica de menosprezar os méritos que possamos encontrar na governação de um ou de outro. Ainda assim, este silêncio não tem nada de salutar. Sobretudo porque começa na classe política: será que ninguém, em particular alguém com responsabilidades políticas, consegue dizer algo sobre esta doença infantil do jornalismo? Que doença? A de as notícias só nos servirem um de dois extremismos: o apocalipse ou o paraíso – em tempo real, dizem eles, que nunca pensaram como é que o real se elabora, refaz ou decompõe na usura do tempo.