Um documentário sobre a vitalidade e identidade da cena pop/rock islandesa,
com imagens de nomes como Sigur Rós, Björk , Apparat Organ Quartet,
Slowblow ou Múm. Este texto sobre 'Screaming Masterpiece' foi publicado
na revista '6a' (do Diário de Notícias) a 21 de Abril de 2006, assinalando
a passagem do filme no Indie Lisboa.
Nos anos 80 havia quem se questionasse porque havia tanta gente encantada com uns tais Sugarcubes que, chegados da Islândia, nos mostravam uma pop estimulante que sabia a qualquer coisa diferente. Vivia-se um tempo de domínio pop/rock com sede britânica ou norte-americana, mas lembrámo-nos então que, da Suíça, tinham surgido uns Yello, do Japão uma Yellow Magic Orchestra, da Noruega uns A-ha? Eram casos pontuais, excepções? Depois Björk , a vocalista dos Sugarcubes, estreou-se a solo, com um disco notável e sucesso a condizer? OK, nada de grave, vinha dos Sugarcubes, era ainda a excepção. Mas depois entram em cena os Gus Gus. Pouco depois os Sigur Rós. E os Múm, e uma série de nomes que começam a dar que falar no continente europeu, cativando atenções para uma pequena ilha de fogo e gelo a caminho do pólo Norte? Mais firme e coesa que as manifestações que devolveram a França aos mapas pop em finais de 90, e, também, por essa altura, chamaram as atenções de muitos para o que se passava na Áustria, ou na Noruega, a cena pop/rock islandesa é um caldeirão de acontecimentos de grande personalidade, visão e criatividade, à espera do momento em que a distância entre a distante ilha e o resto do mundo desapareça. As carreiras de sucesso internacional de Björk e Sigur Rós chamaram atenções. E um segredo pop bem guardado chegou ao fim.
Não é a primeira vez que a cena pop/rock islandesa é retratada em documentários por realizadores locais. Em 1982, Fridrik Thor Fridriksson rodou Rockk Í Reykjavik, um documentário que dava conta da assimilação do punk pelas jovens bandas locais. Em 1998, já com Björk no firmamento pop global, Pop In Reykjavik, de August Jakobsson, dava conta de uma nova geração de acontecimentos e revelava cena underground que em breve poderia lançar surpresas. O filme, entre os nomes tidos como promissores, revelava uma jovem banda de quatro rapazes que tinham acabado de lançar um estranho, mas cativante álbum de estreia na Islândia. Chamavam-se? Sigur Rós.
Screaming Masterpiece não é mais o retrato para consumo interno de 1982 de RokkÍ Reyjkavik, nem o exercício sonhador (embora realista e visionário) do filme que August Jakobsson rodou em 1998. É a constatação de uma realidade que já extravasou fronteiras, que conquista o mundo pela diferença, pela afirmação de uma identidade que, mesmo nascida numa cultura que durante séculos pouco comunicou com o resto do mundo, conhece através da sua música um canal capaz de sugerir as mais inesperadas empatias.
Porque é a Islândia um país com tamanha e tão pessoal oferta musical? Já com uns valentes metros de filme projectado, bandas escutadas e entrevistas assimiladas, ScreamingMasterpiece lança números que, por si só, justificam parte da resposta: num país com 300 mil habitantes há 40 escolas de música, 400 orquestras e bandas de formação clássica, seis mil vozes inscritas em coros e uma infinidade de grupos pop/rock. Chega?...
Björk , em islandês, explica para a câmara de filmar que, depois da independência em 1944, a Islândia levou duas gerações a desenvolver uma confiança na sua identidade: "Começámos por perguntar a nós mesmos o que era ser islandês e a deixar de sentir a culpa de ter estado sob o domínio dinamarquês, colonizados por 600 anos". Esta identidade começou a manifestar-se de diversas formas, uma das mais evidentes uma nova música que nascia da assimilação do punk. "Descobrimos que o que interessava era o que queríamos fazer, não apenas o que fazíamos de facto. E usámos esse poder para definir uma declaração de independência musical", recorda a cantora. Thor Fridriksson, que em 1982 documentou essa revolução em Rokk Í Reykjavikk, cujas imagens aqui se recordam, explica que "as pessoas desenvolveram então uma forte opinião de si mesmas e deixaram de se auto-censurar. Estas bandas de garagem, com complexos de inferioridade, assim que se viram no ecrã, a soar alto, aperceberam-se de uma energia e potencial que tinham já em si". Björk reforça o papel determinante dessa expressão de individualidade, recordando como provocava outros que, na altura, tentavam ser os U2 ou Beatles islandeses, "em vez de procurarem ser eles mesmos".
ScreamingMasterpiece recorda imagens de Björk a ler o manifesto Bad Taste, uma espécie de versão pop islandesa do dogma cinéfilo dinamarquês. Mas, em vez de explicar detalhadamente como se evoluiu de então para o efervescente cenário actual, deixa que seja o espectador a tirar conclusões, certa que é a exposição de bandas cujas actuações o filme acompanha, deixando-nos cientes de que uma busca de personalidade e identidade, um desejo de fidelidade às suas raízes e uma lógica de combate ao "bom gosto" dominante (paródia, claro) continua a caracterizar a esmagadora maioria das manifestações da Islândia pop/rock actual. E, como explica Hilmar Örn Hilmarsson, estas manifestações não são mais que a expressão actual de um hábito de retrato da vida e sua história em canções, com raiz na Islândia desde que as primeiras povoações ali se instalaram. Vemos actuações dos Sigur Rós, Amina, Ampop, Mínus, Apparat Organ Quartet, Slowblow, Singapore Sling, entre outros, telediscos dos Múm e Sugarcubes e curtas entrevistas onde fica clara uma profunda relação da música islandesa com a poesia local, uma esmagadora opção pela língua de origem, e teses que explicam que, tal como em Detroit ou Manchester, cidades chuvosas, a música tinha de brotar em Reykjavik.
O filme corre inteligentemente por salas de concerto e clubes rock, por salas de ensaio nas mais variadas formas (uma delas uma igreja vazia por uma temporada, que o padre emprestou), e até mesmo a casa presidencial, com uma actuação ao vivo e políticos a rir e dançar? Ari Alexnader e Eris Magnússon, os realizadores, não nos expõem conclusões, antes esperam que sejamos nós, espectadores, a tirá-las. E, mesmo sem apontar o dedo aos subprodutos locais (que também existem), não deixam de mostrar como a banalidade do hiphop aculturado dos Quarashi, o tom morno, em inglês dos Mugison, ou o rock'n'roll decalcado da América de uns Vinyl fica a milhas da vitalidade e personalidade dos muitos outros que, como Björk defende, juntam "'patriotismo berrante com grandes doses de adolescência". E aí, sim, está a força que brota da nova música islandesa.
O filme está hoje disponível em DVD. Existe ainda uma edição em CD com a respectiva banda sonora.