sábado, setembro 10, 2011

Mês Björk (10):
Histórias de uma islandesa


Com um Greatest Hits e a caixa Family Tree, Björk apresentava em 2002 dois exercícios de memória sobre a sua importante obra a solo. Entre a "prenda" à editora 
e uma declaração de identidade, duas formas de revisitar uma obra. 
Este texto foi publicado no suplemento DNmais em 2 de Novembro de 2002
com o título 'Genealogias com sotaque'


Por muitas e variadas razões, Björk é uma figura ímpar na história recente da música popular. Não só a sua obra é artisticamente marcante e única, como a sua personalidade, discurso e comportamento de si fizeram um dos raros ícones sólidos da geração de 90. É certo que a sua obra vem de mais atrás no tempo, ora em primeiras gravações a solo em circuito islandês ainda nos dias da sua adolescência ou, logo depois, em grupos como os Tappi Tikarass, Kukhl e Sugarcubes, estes últimos o seu passaporte para uma internacionalização que chegou na recta final de 80. Contudo, mesmo com toda estas primeiras etapas em solo islandês, é nos anos 90, quando assume um percurso a solo, que as suas muitas forças dão de si e chamam atenções. Em menos de dez anos, Björk fez-se uma das mais reconhecidas e elogiadas vozes da cultura popular. Com a particularidade de ser igualmente referida nas esferas da chamada alta cultura, num raro episódio de transversalidade a mundos nem sempre atentos aos mesmos fenómenos.

Sugarcubes
Há uma ideia que cruza a carreira de Björk e que a própria gosta de frisar recorrentemente em entrevistas: a identidade islandesa. É frequente ouvi-la, no seu inglês de sotaque Atlântico Norte, dizer que "a islandesa que há em mim" será a justificação para isto ou para aquilo. Foi assim quando houve que explicar os diferendos com Lars von Trier durante a rodagem de Dancer in the Dark. Fruto do código genético de um povo que viveu 600 anos como colónia, a sua rebeldia contra o "poder" manifestou-se, por exemplo, nessas frontais discussões com o realizador... A mesma "lógica" islandesa justifica as frequentes manifestações de confronto entre uma anarquia que lhe corre no sangue e os cenários polidos brit onde tem desenvolvido a carreira. E é ainda a islandesa quem não esquece o apelo do ar livre, da paisagem natural que ora corre nas entrelinhas de Bachelorette ou nas imagens do teledisco de Joga. A islandesa teve, contudo, de assumir Londres como pólo de acção a partir do momento em que sentiu que os seus objectivos iam além dos Sugarcubes, precipitando o fim do grupo e a entrada em cena de uma carreira a solo em inícios de 90.

O seu percurso a solo, que antes da gravação de Debut tinha já conhecido a gravação de um primeiro álbum, ainda na Islândia (Björk, 1977) e um segundo disco de aventuras jazzísticas em Gling Gló (1990), tomou desde logo a música electrónica como domínio a explorar. Dos primeiros contactos que mantinha com Graham Massey (dos 808 State) ainda em tempo de vida dos Sugarcubes ganhou uma progressivamente mais fluente relação com as diversas linguagens e escolas emergentes. Ao longo dos anos nomes como os de Nelee Hooper, Mark Bell, Eumir Deodato, o Brodsky Quartet e, mais recentemente, os Matmos, foram alguns entre os muitos coadjuvantes de sucessivas lufadas de descoberta e experimentação.

The Juniper Tree
A imagem sempre representou para Björk um complemento indissociável da sua música. De facto, a sua videografia comprova essa dimensão visual de constante desafio, que sublinha frequentemente a face mais evidentemente ensaísta de Björk (à qual não é estranho o progressivamente mais apurado trabalho gráfico tanto nas capas dos discos como no próprio Björk, The Book, do ano passado). Realizadores como Michel Gondry, Spike Jonze ou Chris Cunningham são nomes cujas obras não esquecerão nunca as colaborações com Björk, em clips que raramente deixam o espectador indiferente. Igualmente importante vai sendo a sua obra no cinema, quer nas colaborações que tem assinado pelo lado da música (em Young Americans ou Queres Ser John Malkovich), como na pele frágil da actriz, seja na quase desconhecida Margit de Juniper Tree (filme islandês rodado por Nietzchaka Keene, em 1990) ou na reconhecida Selma de Dancer in the Dark (filme de 2000 de Lars von Trier que valeu à pequena islandesa a Palma de Ouro em Cannes). Esta última experiência cinematográfica (que Björk jura a pés juntos ter sido a derradeira aventura do género), deu-lhe todavia a mediatização global que faltava à autora de álbuns já reconhecidos nos circuitos da música pop como Debut, Post e Homogenic. Dancer in the Dark (ainda por cima com posterior nomeação para os Oscares e actuação em palco na cerimónia de Maio de 2001) fez de Björk um nome de sólida primeira liga mundial. Não admira que, quando lançou o introspectivo e menos acessível Vespertine , em 2001, fosse notícia de primeira página por toda a imprensa de referência à escala mundial.




Em ano de mais reclusão que exposição, Björk acedeu em respeitar a vontade da editora em editar um best of, não sem antes propor um extra: uma caixa que serve de complemento a quem quer mais que a memória dos singles que fizeram história.

Greatest Hits é uma colectânea pensada como qualquer antologia de êxitos, isto é, recolhe os episódios que conheceram maior visibilidade, não esquece os grandes êxitos de airplay e de vendas e junta, qual cereja em cima do bolo, um inédito para compor o retrato... Tomando Debut como ponto de partida, todos os álbuns de originais (à excepção de Selmasongs, de 2000) é chamado a contribuir para o alinhamento. Asssim, ao longo de 15 canções, corremos, sem uma ordenação cronológica, algumas das peças que os telediscos e os singles mais divulgaram. E na verdade, sem menosprezar canções que nunca venceram a fronteira dos respectivos álbuns, estão aqui alguns dos momentos mais determinantes da sua carreira. Espantosamente estão ausentes peças de referência como Violently Happy, It's Oh So Quiet, Cocoon ou I've Seen It All... De novo é apresentado It's In Our Hands, ainda denunciador de alguma proximidade face a Vespertine .

Com outra lógica subjacente à recruta de canções, a caixa Family Tree (que inclui inúmeras gravações inéditas) proporciona outra forma de evocar a obra de Björk. Na verdade, a própria cantora, que reconheceu em Vespertine o final de um ciclo na sua vida criativa, vê esta "árvore genealógica" da sua personalidade como uma série de episódios que explicam o caminho que tomou desde os primeiros passos até chegar ao que hoje é (enquanto artista, convém voltar a frisar).



A caixa, de cinco CD singles, aos quais deverá ser acrescentado um álbum extra, divide as memórias em três categorias distintas: "roots" (raízes), "beats" (batidas ou, se preferirem, programações) e "strings" (cordas). A etapa roots, que ocupa dois CDs da caixa, evoca aquelas canções que Björk entende terem representado momentos-chave de mudança na sua obra. Começamos em gravações em islandês (inclusivamente com uma primeira versão de Birthday, que depois asseguraria a internacionalização dos Sugarcubes) e mesmo em memórias de primeiras aventuras instrumentais (como em Glóra, peça para flauta que compôs e gravou com apenas 15 anos). As raízes começam, depois, a indiciar os trilhos de personalidade mais vincada em canções como Immature, Cover Me, Generous Palmstroke (em momento de exibição ao vivo da sua caixinha de música), Joga (numa leitura distinta da que foi lançada em single) e Mother Heroic. Da intensidade das primeiras gravações à depuração das recentes, mergulhamos, progressivamente, na intimidade de uma escrita cada vez mais pessoal...

O terceiro CD de Family Tree, com o subtítulo Beats, evoca as primeiras maquetes registadas em colaboração com Graham Massey, em inícios de 90. Peças que estarão na raiz da opção estética tomada por Björk depois da separação dos Sugarcubes ora recordam as leituras originais de The Modern Things ou Karvel (mais tarde um lado B de It's Oh So Quiet, numa das raras ocasiões de reencontro com a língua islandesa) e revela I Go Humble e Nature's Ancient.

A fechar o alinhamento oficial de Family Tree, os CDs quatro e cinco, strings, apresentam o concerto conjunto de Björk com o Brodsky Quartet.

Como companheiro da caixa será editado um besf of alternativo. Ou antes, um disco que representa as escolhas da própria Björk, perante o desafio de fazer um disco retrospectivo em que a identidade artística de sobrepõe às intenções de mercado. Apesar de partilharem alguns temas, o best of segundo Björk é mais inesperado, evocando pérolas como Unravel ou You've Been Flirting Again, e não esquece as Selmasongs! A islandesa que há em si ditou a última palavra. Como sempre!