terça-feira, agosto 23, 2011

A TVI e as "boas" imagens

Joan Crawford fotografada por George Hurrell em 1930
(duas fases do trabalho do fotógrafo)
O jornalismo televisivo continua dominado por uma delirante violência moralista, quase sempre empenhada em promover a ignorância dos espectadores. Hoje, a fechar o Jornal das 8 da TVI, tivemos mais uma expressão eloquente de tudo isso, com uma daquelas peças em que, depois de se falar das desgraças do mundo, se avança com algo de "ligeiro" e "pitoresco".
O tema escolhido foi a retirada de alguns anúncios da L'Oréal, na Grã-Bretanha, por ter sido considerado que neles se utilizavam imagens retocadas de Julia Roberts (o nome de Christy Turlington, também protagonista de alguns desses anúncios, é sempre omitido, porque só "complica" a polémica...). Tese dos que protestaram: tais imagens promoviam uma visão inadequada e, sobretudo, "idealizada" das mulheres (curiosamente, também nunca se diz que a medida foi solicitada por um membro do Parlamento, como se fosse possível perceber o caso concreto sem ter em conta que ele emana de um princípio de purificação hoje em dia muito enraizado nos mais diversos sectores políticos).
Qual, então, o ponto de vista? Discutir as ambivalências do discurso publicitário? Nem isso. A única ideia (?) era a de que as imagens "sérias" são aquelas que mostram tudo tal e qual... Com testemunhos para confirmar que, sim senhor, é verdade que as imagens são retocadas, manipuladas, etc. E com uma escolha cujo valor sintomático é intensamente eloquente: a figura a que se atribui, implicitamente, autoridade para problematizar a questão provém da área da imprensa cor-de-rosa (o que, aliás, fez, pelo menos, com algum distanciamento irónico).
O nível de argumentação era de um infantilismo atroz, tendo sempre como objectivo "ajudar" os espectadores a não serem "enganados". Mas o mais espantoso eram as duas omissões fulcrais:
1 - a primeira é de natureza histórica: será que alguém faz uma peça destas, alguém a revê, alguém a apresenta e alguém a difunde... e ninguém se lembra que a história da imagem fotográfica é, em grande parte, a história dos seus permanentes processos de reconversão? Já alguém alguma vez olhou, com olhos de ver, para o riquíssimo património clássico de Hollywood? George Hurrell, por exemplo.
2 - a segunda envolve toda a arquitectura conceptual que passou a dominar o jornalismo televisivo; que é como quem diz: esse jornalismo situa-se do lado das "boas" imagens, arrogando-se o direito de dividir o mundo em função de dicotomias que reduzem toda a experiência humana a um jogo de prós e contras (de que a televisão, naturalmente, seria o imaculado vigilante).
De acordo com a moral vingadora deste jornalismo, só na televisão se podem encontrar as imagens directas e inconstestáveis do nosso mundo. Será que não sabem que qualquer imagem é, por definição, uma forma de recriação do real, reinventando esse real e refazendo as suas fronteiras? Ou será que confundem a obscenidade "realista" do Big Brother como a matriz obrigatória de todas as imagens?