quarta-feira, agosto 10, 2011

Televisão: o apocalipse do serviço público

PIET MONDRIAN
Composição nº 10 (1939-42)
1. Agitando-se de novo as águas, políticas e económicas, especulando sobre a eventual privatização da RTP, regressam também as elucubrações sobre o serviço público: o que é, o que pode ser? E também, inevitavelmente: o que deve ser?

2. Quer isto dizer que vão passar à condição de relíquia histórica os 84.346 caracteres das 28 páginas do Contrato de Concessão do Serviço Público de Televisão, assinado apenas há pouco mais de três anos entre o Estado Português e a Rádio e Televisão de Portugal, S.A.?

3. Provavelmente, devemos abandonar qualquer ilusão redentora: tal documento não seria um primor de eficácia, ferido que estava por um delírio normativo que não encontra correspondência automática em nenhum contexto audiovisual, por mais transparentes, ordenadas e estáveis que sejam as respectivas estruturas.

4. Em paralelo, também não será muito produtivo dispersarmo-nos num exercício retroactivo de tribunal popular — esperemos, sobretudo, que os partidos políticos nos poupem a mais alguns jogos florais em torno da "inocência" televisiva que cada um se atribui e da "culpa" que os outros obrigatoriamente devem assumir.

5. Corremos o risco, é bem certo, de assistirmos ao renascimento teórico de todos os anjos da guarda que, da direita à esquerda, continuam a viver para além da última lua de Saturno e, ciclicamente, nos vêm avisar para os perigos do "sexo" e da "violência" nos programas televisivos.

6. E é muito possível que (aquilo a que chamam) o serviço público venha a ser encurralado num espaço de elaboradíssimas normas programáticas de tal modo claustrofóbico que a sua piedosa "salvação" seja apenas a aparência de uma metódica agonia social e económica.

7. Assistiremos, por certo, à renovada e bem intencionada convocação dos "especialistas" que possam fazer relatórios e estabelecer directrizes. Para quê? Para os políticos aplicarem... precisamente os mesmos políticos que assistem, há décadas, à degradação televisiva da cultura popular sem esboçarem o mais discreto trejeito de dúvida ou interrogação.

8. Quem tem, então, solução para o apocalipse anunciado do serviço público? Eu não, em todo o caso... Resta saber se alguma entidade da nossa cena política tem o sangue frio de reconhecer que qualquer definição de serviço público pressupõe uma cultura sólida (isto é, socialmente enraizada) do próprio Estado como entidade de referência. E essa cultura ninguém a tem — já ninguém a tem.

9. Em boa verdade, a destruição do Estado como entidade de referência — desde o domínio vital dos valores sociais até ao espaço específico da família — tem sido um processo em grande parte induzido (quando não protagonizado) por uma nova cultura populista e demagógica, globalmente liderada pelas televisões.

10. Daí o drama insolúvel de quase todos os nossos políticos: depois de décadas de indiferença pela evolução da paisagem televisiva, que valores ou energias têm para celebrar algum conceito consistente de serviço público? Não têm.