Em televisão, o futebol tende a ser tratado como uma actividade formatada, "obrigada" a modelos pueris de determinismo e justiça... Não admira que, face às suas imagens, a palavra beleza esteja sistematicamente ausente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 de Agosto), com o título 'Onde está a beleza?'.
Perversão insólita da televisão: dentro do pequeno ecrã, já quase ninguém fala de beleza. Em boa verdade, o facto não tem nada de surpreendente: a fealdade dominante das telenovelas é de tal forma monstruosa (com a sua luz crua de telejornal, as cores berrantes de banal anúncio de shampoo e a sistemática indiferença figurativa pelas singularidades de cada corpo) que já não é possível conceber uma hipótese, ainda que débil, para celebrar o belo.
Também não ajuda o facto de circular um discurso académico que faz supor que a beleza das imagens depende obrigatoriamente da “imitação” da grande pintura do século XVIII: para tal discurso, o sol a reflectir-se num lago, de preferência com uns patinhos a chapinhar, é mesmo o padrão definitivo da redenção pelo belo.
Confunde-me, em particular, que num espaço tão saturado de referências ao futebol, sejam cada vez mais raras as vozes disponíveis para celebrar a sua beleza e, muito em particular, a sua beleza televisiva. Claro que não podemos esperar isso de comentadores que anseiam ser juízes de tribunal, despendendo infinitas energias (suas e nossas) para calcular se um determinado resultado foi “justo” ou “injusto”. Por vezes, mostram-se tão empenhados em repor a “justiça” que parecem querer promover alguma espécie de reparação na praça pública...
A final da Community Shield, entre as duas equipas de Manchester (United e City), foi um desses eventos de esplendorosa beleza. Pelo próprio jogo, claro, decidido por um golo de Nani (o segundo por ele marcado) já bem para lá dos 90 minutos. Mas também pelo admirável trabalho narrativo da realização da televisão inglesa. Por exemplo, as repetições dos golos em câmara lenta (lentíssima), a partir de um ponto de vista obtido na zona da baliza contrária, foram momentos de uma beleza visceral, enraizada no espaço (reinventado) e no tempo (dilatado).
A reter: a silhueta de De Gea, guarda-redes do United, erguendo os braços no momento de um dos golos da sua equipa, em discreta câmara lenta, com as bancadas em fundo, ligeiramente desfocadas. Belíssima imagem! Sem justiça nem injustiça.