Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus efeitos escrevesse.
Luís de Camões
* Eu sei que é fácil escrever sobre a morte dos outros. Porque o fazemos sempre suspendendo a certeza da nossa morte — da minha morte. Resgatamo-nos dessa facilidade, assim o esperamos, reconhecendo a morte do outro como um gesto ainda de vida — da vida que o outro nos lega, num misto de distância insuperável e proximidade espiritual. E tanto pior se a mediocridade destes tipos televisivos insiste em transformar a palavra espírito numa moeda de troca para programas de consagração de todas as formas de estupidez.
* Na morte de Maria José Nogueira Pinto, deparamos assim (deparo eu, em todo o caso, malgré moi) com uma herança de genuína independência de pensamento que, mais do que nunca, falta à dinâmica global da nossa classe política. Eu sei que a morte nos recolhe na desarmada simplicidade da nossa humanidade — e sou sensível ao genuíno luto com que a classe política recebeu o seu desaparecimento. Ainda assim, se há alguma herança que dela fica (e eu acredito que há) é a de uma exigência discursiva, intelectual e ética que tantas vezes tem faltado a tantos membros dessa classe — e também a muitas formas de intervenção jornalística que legitimam a respectiva mediocridade existencial.
* Leio a derradeira crónica de Maria José Nogueira Pinto, publicada no Diário de Notícias um dia depois da sua morte. Tem um título feliz: 'Nada me faltará'. Agarro-me à felicidade desse título. Porquê? Porque leio nele um princípio de resistência pessoal e íntimo ("Seja qual for o desfecho, como o Senhor é meu pastor, nada me faltará.") que envolve um radical entendimento do lugar público do seu discurso. Celebrando "estes tempos felizes e difíceis", Maria José Nogueira Pinto demarca-se da lógica catastrofista e revanchista que continua a contaminar muitos discursos da nossa classe política (e jornalística). Os mortos nunca simplificam a nossa vida. Felizmente.