Quando (e como) a classe política irá manifestar disponibilidade para pensar a questão (política, por excelência) do papel social da televisão? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 de Junho), com o título 'A televisão da "crise"'.
1. Considero chocante que a classe política portuguesa discuta infinitamente a “crise” (palavra emblema do nosso presente) sem por um momento perguntar qual o lugar da televisão no seu interior. Os membros dessa classe conseguem mesmo manter um silêncio militante face ao indesmentível facto de a televisão se ter transformado num dos principais instrumentos da política que, mal ou bem, se vai fazendo.
2. Dizer isto não envolve nenhuma demonização da televisão. Não se trata sequer de separar “bons” e “maus” programas. Trata-se, isso sim, de perguntar até que ponto a generalidade da classe política aceita (ou não) que a política seja feita em função de três valores, dominantes na informação televisiva. A saber: a redução de todas as diferenças a debates conflituosos, cada um deles servindo apenas para alimentar o seguinte; a fulanização de todas as questões, narrando a política como uma tensão insolúvel entre “personalidades”; enfim, a saturação moralista do próprio espaço das ideias, tornando quase impossível a formulação de… uma ideia.
3. Num filme de 1994, Quiz Show, Robert Redford mostrava de forma eloquente (aliás, inspirando-se em factos verídicos) o modo como a televisão pode funcionar como mecanismo impostor: não tanto porque, por vezes, mente; mas sobretudo porque promove uma formatação do mundo (das suas imagens e sons) que vai estreitando todas as possibilidades de ver e pensar.
4. Em breve, a questão da possível privatização na RTP dará origem, muito provavelmente, a mais uma anémica discussão sobre o conceito de “serviço público”. Porquê? Porque ao longo das últimas décadas a classe política pouco mais tem mostrado do que um entendimento anedótico do assunto, julgando-se vocacionada para defender uma qualquer pureza mediática de que a televisão “comercial” estaria dispensada. Como sempre, ficará por pensar o poder da televisão (incluindo a televisão “pública”) como entidade organizadora de toda a nossa sociedade, desde a percepção do quotidiano até à definição da privacidade. De facto, é essa a primeira questão política do nosso tempo. Talvez a única.