Para onde vai a grande e nobre tradição da comédia made in USA? Este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 de Junho), com o título 'As muitas ressacas de Hollywood'.
Há qualquer coisa de inapelavelmente frustrante no conformismo criativo de A Ressaca – Parte II, de Todd Philips. Desde logo porque o primeiro filme, também dirigido por Philips e protagonizado pelo mesmo trio (Bradley Cooper, Zach Galifianakis e Ed Helms), surgiu em 2009 como uma variação realmente estimulante sobre algumas clássicas matrizes de humor; agora, dir-se-ia que os envolvidos mais não quiseram do que repetir uma colecção de gags copiados do original sem sequer disfarçar a sua preguiça narrativa. Mas sobretudo porque esta continuação é mais uma oportunidade perdida para Hollywood encontrar e, de algum modo, reinventar o melhor das suas tradições.
E não se trata, entenda-se, de favorecer essa visão corrente, fortemente induzida pelo mercado (e também, convenhamos, por algum jornalismo), segundo a qual o cinema americano do presente se esgota numa panóplia mais ou menos sofisticada de “efeitos especiais”. Bem pelo contrário: não é possível entender esse cinema sem ter em conta que o seu poderio tecnológico não exclui uma espantosa diversidade interior, por vezes marcada por experiências de fascinante extremismo estético (veja-se o caso exemplar de A Árvore da Vida, o filme com que, há duas semanas, Terrence Malick arrebatou a Palma de Ouro de Cannes). Trata-se, isso sim, de constatar que a produção mais rotineira de Hollywood vive a agonia de muitas ressacas em torno de um mesmo problema expressivo: a dificuldade de retomar a herança formal dos seus géneros mais populares.
Aconteceu assim com o western, decomposto pela vaga de autocrítica que o assombrou nas décadas de 1960/70. Aconteceu também assim com o musical, sujeito a regulares processos de “renascimento”, a maioria artisticamente inócuos. No caso da comédia, a decadência pode ser balizada por dois títulos imitados até ao tédio: primeiro, Porky’s (1982), filme que substituiu o valor clássico da escrita pela mera proliferação de obscenidades; depois, American Pie (1999), consagração do adolescente estúpido como padrão “ideal” do herói cómico.
O mais desconcertante é que tudo isso decorre do esbanjamento de um trunfo comercial clássico (a organização da produção por géneros), em proveito de um conceito de produção e marketing em que cada filme é encarado como um empreendimento económico mais ou menos isolado, susceptível de “repetições” mais ou menos rentáveis. Na prática, isto significa que a lógica que gera A Ressaca – Parte II está enraizada numa visão banalmente tecnocrática da produção cinematográfica, sempre à procura da “duplicação” das condições do investimento anterior. Não consta que alguém alguma vez tenha proposto fazer-se “E Tudo o Vento Levou – Parte II” ou “Lawrence da Arábia Contra-Ataca”. Porquê? Porque há uma diferença entre uma indústria que conhece os seus artistas e uma outra que se decide apenas nos gabinetes dos gestores.