domingo, junho 26, 2011

Do outro lado do oceano

Este texto foi originalmente publicado na edição de 25 de Junho da revista NS com o título 'Um Novo Mundo'.

São seis da tarde, num estúdio de fotografia no segundo andar de um edifício na rua 29, não muito longe da sétima avenida. Trocam-se T-shirts, acertam-se retoques na maquilhagem. E segue-se nova série de fotos. O fotógrafo quer saber como se diz isto e aquilo em português. “É difícil”, comenta a cada nova expressão que ouve traduzida... À sua frente, encostados a uma parede branca, os quatro elementos dos The Gift vão respondendo às perguntas... E aceitando as sugestões para novas poses. Vicky, a promotora local da banda, precisava de imagens novas para os apresentar à imprensa norte-americana. Imagens que assim se juntam a um teledisco de palco rodado na véspera, na Bowery Ballroom, preparando o terreno para o lançamento do mais recente álbum, Explode, deste lado do Atlântico. E que tem data marcada para finais de Setembro.

As conquistas fazem-se aos poucos. E é pensando num futuro que não é apenas o da próxima semana, que a banda portuguesa pensa neste momento um relacionamento mais sério com o público americano. Não foi a primeira vez que se apresentaram em palco em Nova Iorque (e até passaram já por outras salas com nome feito). Mas desta vez a velha casa no East Village ia receber, entre a plateia, agentes locais que pudessem querer tomar em braços a eventualidade do lançamento de uma digressão local para os The Gift.

Chegados de Toronto, onde tinham actuado, e depois de uma entrevista de rádio ainda nessa manhã, banda e equipa técnica montavam o palco. A Bowery Ballroom era a essas horas, a meio de uma tarde de chuva, uma plateia que só não estava vazia porque pelo chão ainda moravam os instrumentos que, pouco depois, seriam instalados no palco.

Cada qual ia fazendo o seu trabalho. Acertava-se o pano de fundo, alguém olhava pelo merchandising no andar inferior. No camarim Sónia Tavares cuidava de retoques na roupa que ia vestir mais tarde. “Estive até a cozer”, gracejou ao aparecer, pouco depois, na sala... Olhavam para o palco. E não evitavam uma gargalhada ao ver as escadas íngremes que subiam a parede ao fundo, do lado esquerdo. John Gonçalves lembrava um concerto dos Vampire Weekend que ali tinha visto recentemente. Confundindo a azáfama dessas escadas com o que julgava ser o acesso do camarim aos palcos, avisara que seria impossível fazerem um encore, porque não fazia sentido andarem escada acima escada abaixo, à frente de toda a gente. A escada, afinal, era apenas para serviço de electricistas e o acesso dos artistas a cena, é na verdade, bem mais fácil. E riam uma vez mais com a situação.


A Bowery Ballroom nem é uma sala muito grande nem muito pequena. Com capacidade para, talvez, pouco menos de 500 pessoas, tem uma história bem mais antiga que aquela que ali se tem feito de música e concertos. O edifício data de finais dos anos 20 (levantado pouco antes do ‘crash’ de 1929), e viveu como casa vazia até aos anos 40. Albergou lojas mas sofreu mais tarde com a degradação do bairro a seu redor. No final dos anos 90 foi remodelada para acolher a sala de concertos que ali hoje vemos. Naquela noite o nome dos The Gift fazia as honras da casa.

A meio da tarde chega a bateria (fundamental no som actual da banda e a cargo do veterano Mário Barreiros). No meio da sala, enquanto se ultimava a montagem do palco, John recebia a visita de uma velha amiga. Voz dos Hugo Largo em finais dos anos 80 e autora de primeiras partes de concertos dos The Gift nos Coliseus há uns valentes anos, Mimi Goese não podia faltar. Recordava uma monumental chuvada que impedira um concerto ao ar livre em Alcobaça. Em tarde de aguaceiros brincava: “apareço e, comigo, vem sempre a chuva... É o meu presente”, ria.

Ainda a tarde de ensaios ia a meio e já pela sala caminhavam os operadores de câmara que iriam captar imagens do concerto para delas fazer nascer um teledisco de palco para o tema ‘Race Is Long’, do novo álbum. Decidia-se também que canções apresentar. O alinhamento ia incidir naturalmente sobre as novas canções, mas estavam abertos espaços para algumas outras mais antigas.


No camarim Sónia ia trabalhando o penteado. E mostrando, e rindo, as etapas intermédias pelas quais ia passando. Miguel Ribeiro saia para jantar com a equipa técnica. Nuno Gonçalves olhava novamente para o alinhamento. John dava mais uns dedos de conversa. Uma equipa da CNN chegava para uma entrevista. Quando? “O melhor era ser já”, explicava Sónia. Ou seja, antes que a banda que iria assinar a primeira parte entrasse em palco. Lian, a manager local dos The Gift (que há muito conhece, e bem, Lisboa), zelava pelo sossego em volta do camarim. Ninguém passava, naquele momento, pela porta sem a sua autorização. “Estão a dar uma entrevista”, explicava, ao mesmo tempo que ia mostrando umas socas vintage com mais de 30 anos que trouxera num saco.


A primeira parte mostrou os Xylon, banda de Brooklyn que ainda recentemente viu o seu primeiro álbum ser elogiado nas páginas do New York Times. Escola new wave, com um piscar de olho às memórias dos Blondie de finais dos anos 70. Não acrescentam nada que a história da pop não nos tenha já revelado. Mas dão conta do recado e não envergonham ninguém.

Não foi longa a pausa entre concertos. Apenas o tempo suficiente para retirar os teclados da primeira banda, verificar ligações... E, ao som de momentos da banda sonora de A Single Man, de Tom Ford, os The Gift entram em cena.


Portugueses em Nova Iorque, abrem o alinhamento cantando em português. Para que não haja dúvidas. Para marcar uma posição. E porque não?

Canção após canção o alinhamento seguiu essencialmente entre as canções de Explode, álbum mais claramente talhado para o palco que qualquer dos discos anteriores da banda. E com bem mais evidente mão cheia de propostas capazes de chegar às playlists de estações de rádio. RGB que o diga, tema com todos os ingredientes que se pede a uma canção que quer ser mais que uma mão cheia de minutos para escutar num concerto.

Os anos de estrada jogam a favor da banda. Estão bem rodados, seguros em palco, coadjuvados por três músicos convidados que assim elevam a sete o número de figuras em cena. Sónia Tavares, de quem não será novidade falar de uma voz poderosa, revela hoje uma segurança no canto e no gesto que também não é senão o resultado natural de anos de estrada e de canções vividas. O cardápio de temas e a solidez da performance agarraram uma sala muito bem composta. E abriram sorrisos entre os profissionais locais que ali tiravam uma espécie de prova dos nove... E não era por acaso que, logo na manhã seguinte, havia reuniões em agenda. A verdade é que ninguém foi indiferente à bela prestação em palco dos The Gift. E das reuniões que se seguiram ao dia do concerto os elementos do grupo regressaram com desafios e propostas. A que certamente terão de responder em pouco tempo.

Com uma história que vai já para lá de uma década de actividade, o grupo pode ter neste 2011 um ano decisivo para a sua afirmação além-fronteiras. Espanha já os conhece. O Brasil vai escutá-los na edição do Rock In Rio que este ano ali regressa “a casa”. E é quase certo que, dos EUA, teremos notícias muito em breve.