segunda-feira, junho 06, 2011

Descartes não esteve na campanha eleitoral

RENÉ DESCARTES por Frans Hals (1648)
Será que, em televisão, ainda alguém se preocupa em olhar à sua volta? Face à maioria dos repórteres da campanha eleitoral, eis uma dúvida que se amplia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 de Junho), com o título 'Uma campanha sem Descartes'.

Em 1987, num filme magnífico chamado Broadcast News (Edição Especial), James L. Brooks traçou o retrato vibrante de um grupo de jornalistas de um canal de televisão, num registo em que as emoções da vida vivida se cruzavam sempre com as imagens (e os sons) da vida noticiada. Dizia a frase promocional: “É a história da vida deles”. Muito severo em relação aos abusos da informação, o filme era também muito caloroso em relação às suas personagens: em boa verdade, Brooks aceitava-as em toda a sua exuberante e contraditória dimensão humana.
Olho para os repórteres televisivos da campanha eleitoral e perguntou-me que résteas de humanidade exibem. O que tenho visto nos últimos dias é, no mínimo, angustiante. Dir-se-ia que quase todos se demitiram de qualquer relação com aquilo que têm à sua frente. E em sentido dramaticamente literal: vejo-os procurar situações e enquadramentos em que a única coisa que conta é mostrar que, atrás deles, acontece alguma “confusão”. Há os que se esforçam por falar mais forte que os gritos dos manifestantes. Outros caminham, arfantes, no meio desses manifestantes, tentando articular duas frases com princípio, meio e fim, ao mesmo tempo que se entregam a infantis exercícios de equilibrismo. Vi mesmo alguns, em pose sofrida de peregrinos, sob uma chuva inclemente, garantindo-nos que... estava a chover!
Há uma tristeza insuperável em tudo isto: a maior parte destes repórteres são jovens que foram educados para pensar que fazer uma reportagem é este malabarismo anedótico de manter os olhos bem fixos na câmara e proclamar 30 segundos de palavras que o apresentador, no estúdio, já disse ou vai repetir. Acredito que eles têm consciência do gratuito do seu esforço, mas há qualquer coisa de trágico na sua performance: por um lado, conseguem rasurar cinco séculos de cartesianismo e da sua simples exigência de olhar e pensar; por outro lado, ignoram a necessidade de discutir a ilusória transparência das imagens (e dos sons), ensinada por mais de cem anos de história do cinema. São, enfim, instrumentos do metódico processo de esvaziamento da vida política.