terça-feira, maio 10, 2011

Nos 70 anos de "Citizen Kane"


Citizen Kane, de Orson Welles, estreou-se no dia 1 de Maio de 1941; Peter Bogdanovich fez uma comovente evocação — este texto foi publicado no Diário de Notícias (8 de Maio), com o título 'A herança de Orson Welles'.

Há dias, numa entrevista a Steve Paikin, numa televisão estatal do Canadá (TVOntario), o crítico e cineasta americano Peter Bogdanovich evocava Citizen Kane/O Mundo a Seus Pés, de Orson Welles, referindo-se à sua própria descoberta do filme (tinha 16 anos). Segundo Bogdanovich, foi aí que teve a noção de que podia existir um autor detrás de um filme: da realização à interpretação, passando pela escrita do argumento (e Welles acumulava tudo isso), ele assistia à contundente expressão de um universo eminentemente pessoal.
A entrevista tinha como motivação próxima uma data que a nossa banalidade televisiva, sempre disponível para criar ruído em torno de algumas efemérides, olimpicamente ignorou: no dia 1 de Maio, passaram exactamente 70 anos sobre a estreia de Citizen Kane no RKO Palace, na Broadway. Em todo o caso, como Bogdanovich [foto] relembra, a indiferença começou logo nessa altura, já que o filme teve um impacto apenas mediano, mesmo se desde o seu lançamento encontrou alguns empenhados defensores (incluindo o escritor argentino Jorge Luis Borges). O reconhecimento de Citizen Kane como um clássico absoluto, várias vezes citado no primeiro lugar de listas dos “melhores filmes de sempre”, só aconteceria a partir do seu relançamento na década de 50, sendo indissociável do boom da crítica de cinema por essa altura ocorrido nos mais diversos contextos (americanos e europeus).
Rodado quando Welles tinha apenas 25 anos, Citizen Kane representa uma herança riquíssima que, escusado será sublinhá-lo, não se desvaneceu. Desde logo pelo seu tema: a personagem de Welles, o magnata da imprensa Charles Foster Kane, condensava a questão (actualíssima) do poder dos jornais e do jornalismo. Os paralelismos com um verdadeiro magnata, William Randolph Hearst, conferiram ao filme um perturbante efeito de espelho (a ponto de Hearst ter movido as suas influências para tentar impedir a própria rodagem). Enfim, Welles foi um genuíno e radical experimentador e a inteligência narrativa de Citizen Kane, com a sua teia de flashbacks que se cruzam num tempo íntimo e enigmático, reduz a pó muitos disparates contemporâneos que confundem a proliferação de “efeitos especiais” com a própria assinatura do cinema.
Vale a pena ver e ouvir o diálogo de Paikin e Bogdanovich  (reproduzido aqui em baixo). É um exemplo cristalino de como é possível utilizar a televisão, não para acumular soundbytes mais ou menos conflituosos, mas para, realmente, conversar. Acima de tudo, trata-se de um diálogo que celebra a passagem do tempo cinematográfico com sageza e humor, sem reduzir o passado dos filmes a uma colecção de anedotas mais ou menos pitorescas. O tempo, aliás, lembra-nos também que Bogdanovich (autor do livro This Is Orson Welles) nasceu a 30 de Julho de 1939. Ou seja: no momento da estreia de Citizen Kane, estava à beira de completar... 2 anos!


>>> Citizen Kane na Wikipedia.