domingo, abril 10, 2011
Quando a escrita vive uma vida
Estes textos foram originalmente publicados na edição de 2 de Abril do DN Gente num pequeno dossier sobre Christopher Isherwood com o título 'Escrita que Reflecte uma Vida'.
Don Bachardy começou a ler os diários de Christopher Isherwood no dia em que o escritor morreu, a 4 de Janeiro de 1986. São "dúvidas, ansiedades e irritações que nos tocam a todos, mas que poucos de nós registaram para a posteridade", explica Peter Parker na extensa biografia Isherwood, publicada em 2004 pela Picador. Bachardy, o pintor que viveu com Ishwerood desde que se conheceram, em 1953, decidiu então publicar os diários. E para a construção do seu retrato há que ter ainda em conta as palavras, vivas, do próprio Don, cuja história de vida conjunta entre ambos teve já eco no documentário de 2008 Chris and Don: A Love Story, de Tina Mascara e Guido Santi (exibido na edição de 2009 do Queer Lisboa).
Mas através da escrita de ficção de Isherwood passava já uma pulsão autobiográfica que cruza fragmentos da realidade. Abundam marcas de identidade, retratos de vivências, cenários e gentes que conheceu e episódios que viveu. De resto, o escritor revelou uma vez que a carta de um leitor de que mais gostou dizia que ele "tentava descrever o que é estar vivo". E, completa o biógrafo Peter Parker, "a melhor forma que ele encontrou para descrever isto mesmo foi descrevendo quem era Christopher Isherwood - não porque se visse como uma espécie de Homem Total, mas porque a coisa em que mais confiava na vida era a sua própria experiência".
Escritor inglês também reivindicado pelos norte-americanos, Christopher Isherwood foi essencialmente um romancista, pela sua obra passando ainda várias páginas de memórias e ainda uma sucessão de trabalhos para o teatro e o cinema. Aliás, podemos mesmo atribuir ao cinema - em concreto à estreia em 2010 de Um Homem Singular, de Tom Ford, ou à recente reedição em DVD de Cabaret, de Bob Fosse, ambos os filmes nascidos das palavras do escritor - um renovado interesse local pela sua escrita. Um interesse que se manifesta agora na publicação de obras suas pela Quetzal, o primeiro título (já publicado) tendo sido, precisamente, Um Homem Singular (A Single Man no original), seguindo-se, já em Maio, um segundo volume com uma tradução do clássico Adeus a Berlim (precisamente o conto a partir do qual nasceu a visão de Bob Fosse que ganharia forma no grande ecrã em Cabaret).
A etapa de vida em que teve Berlim como casa (entre 1929 e 1933) e outra, mais longa, que o levou a permanente residência na Califórnia, foram as que talvez mais marcaram a sua escrita. Ou, pelo menos, vincaram presença nos seus textos com maior reconhecimento. A primeira passa por contos como o já referido Goodbye to Berlin (1939) ou Mr Norris Changes Trains (1935) - os dois várias vezes tendo sido publicados como Berlin Stories - ou pelas memórias que evocou em Christopher and His Kind (de 1976) A segunda passa, além de Um Homem Singular (1964), por Down There on a Visit, de 1962. Da Inglaterra que o viu nascer trata, por exemplo, o mais antigo The Memorial (de 1932).
Christopher Isherwood nasceu a 20 de Agosto de 1904 em Wyberslegh Hall (no Cheshire, em Inglaterra). Filho de um militar, conheceu várias casas, em diversas localidades, nos tempos de infância. A morte do pai, durante a I Guerra Mundial, levou-o a fixar-se, com a mãe e irmão em Wyberslegh. Conheceu W.H. Auden ainda nos dias de escola. Reencontrar-se-iam já depois da universidade, da amizade entre ambos nascendo a primeira viagem a Berlim, em finais dos anos 20. Foi aí que Isherwood viveu finalmente, e com outra tranquilidade, a sua homossexualidade, pelos dias de Berlim passando histórias de primeiros amantes que, de uma forma ou outra, ganhariam expressão em narrativas e memórias nas quais mais tarde traduziu a vibrante vida da cidade nesses tempos. Observou in loco o progressivo protagonismo de Hitler no panorama político alemão, acabando por abandonar Berlim precisamente em 1933, ano em que aquele chega ao poder.
Depois de deixar Berlim, e antes de encontrar nova (e definitiva) morada nos EUA, Christopher Isherwood viveu uma breve estada na região de Sintra. Acompanhado por Heinz, Spender e Hyndman, chegou a Lisboa de barco, vindo de Antuérpia (Bélgica). Viajaram no mesmo dia para Sintra, começando por se hospedar num hotel, mudando-se pouco depois para a Villa Alecrim do Norte, em São Pedro, já em plena serra de Sintra. Estavam ainda em finais de Dezembro e durante as primeiras semanas em Portugal não conheceram senão dias de chuva. Como senhoria tinham uma inglesa, Miss Mitchell. Auden foi um dos visitantes que a villa recebeu, ali tendo trabalhado em The Ascent of F6. Uma carta do consulado alemão chamara entretanto Heinz de regresso à Alemanha. Isherwood ainda consultou um advogado em Lisboa, mas optou por se mudar para a Bélgica, a maior proximidade do Reino Unido deixando-o assim mais tranquilo.
Só depois cruzou o Atlântico Atlântico. Auden, com quem co-assinou várias textos dramatúrgicos (como The Dog Beneath the Skin, The Ascent of F6 ou On the Frontier) foi uma vez mais um importante parceiro na partida para os Estados Unidos, com ele vivendo em Nova Iorque durante algum tempo à sua chegada. Encontrou contudo a sua casa na Califórnia, da vida com Don Bachardy resultando mesmo alguns trabalhos conjuntos. De resto, os primórdios de uma ideia de literatura queer passam, necessariamente, por Isherwood.
Originalmente publicado em 1964, Um Homem Singular é um dos romances daquela que poderíamos descrever como a etapa americana da obra de Christopher Isherwood. Atravessado por ecos de marcas autobiográficas o romance observa, com um interesse pelo pequeno detalhe, um momento na vida de um professor universitário que, na sequência da morte daquele que com ele viveu anos a fio, sente que o seu caminho, a sós, pode não fazer mais qualquer sentido... Agora traduzido pela Quetzal, o romance foi também um dos mais recentes textos de Isherwood a conhecer uma adaptação para os ecrãs (mais recentemente tendo surgido uma leitura televisiva para Christopher and His Kind, com realização de Geoffrey Sachs). Realizado por Tom Ford, e contando no elenco com Julianne Moore e Colin Firth (este tendo merecido uma nomeação para os Óscares e ganho um Globo de Ouro), Um Homem Singular seguiu com deferência as sugestões das palavras do escritor. Não foi o único caso de vida cinematográfica para um texto seu. Além do célebre Cabaret, de 1972, de Bob Fosse (uma mais recente versão televisiva, em 1993 por Sam Mendes), de Isherwood o cinema conheceu argumentos por si assinados (como The Great Sinner, de Robert Siodmak, de 1949) e várias outras adaptações de textos seus, de I Am A Camera, de Henry Cornelius (1955) a The Sailor from Gibraltar, de Tony Richardson (1975). A sua experiência no mundo do cinema gerou ainda o romance Prater Violet, de 1945.