Palma de Ouro de Cannes/2010, O Tio Boonmee que se Lembra das suas Vidas Anteriores, de Apichatpong Weerasethakul, convida-nos a um inusitado registo fantástico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 de Março), com o título 'Adivinha quem Vem Jantar?'.
Boonmee (Thanapat Saisaymar) é uma daquelas personagens que, ao aproximar-se da morte, arrasta consigo toda um desejo utópico que, paradoxalmente, sempre habitou o cinema, desde os tempos heróicos do mudo. A saber: mostrar o... invisível. Neste caso, através do fantasma da mulher de Boonmee. Filme fantástico, então? Sim, sem dúvida. E o título, O Tio Boonmee que se Lembra das suas Vidas Anteriores, aí está para situar a lógica do seu projecto: recordar é coexistir com as ambivalências de todas as memórias, relativizando o conhecimento, suscitando novos olhares e pensamentos. Com uma peculiaridade que, à falta de melhor, apetece chamar oriental. Não estamos, de facto, perante um mundo alternativo que se demarca do nosso, discutindo a sua coerência, talvez mesmo ameaçando a sua estabilidade. Bem pelo contrário: os fantasmas de Boonmee podem assumir as formas menos hortodoxas, mas distinguem-se por uma desconcertante sociabilidade. No limite, chegam e... sentam-se à mesa para jantar.
A realização de Apichatpong Weerasethakul enraíza-se nessa estranha familiaridade do quotidiano que faz com que os gestos mais banais se apresentem enredados com o medo, o sexo, o pressentimento da morte e a sempre indesmentível pulsão de vida. De tal modo que, no nosso obstinado ocidentalismo, apetece descrever O Tio Boonmee... como uma fascinante deambulação “freudiana” pelas paisagens mais secretas da nossa muito humana vulnerabilidade. A evocação do pai da psicanálise será deslocada a pretexto de um objecto tão ligado ao património lendário da Tailândia? Talvez. O certo é que os nomes que damos às coisas são também instrumentos decisivos da nossa identidade. Apichatpong Weerasethakul, por exemplo: os seus amigos chamam-lhe... “Joe”.