1. Na sua depurada contundência, o texto da primeira página do jornal i resume o modo como, globalmente, tem sido tratado o pedido de ajuda ao FMI por parte do governo português: "Sócrates resistiu, mas capitulou em véspera de congresso do PS e a dois meses das eleições."
2. Esta perspectiva — Sócrates capitulou... — é tanto mais interessante quanto ilustra, de forma muito directa e reveladora, o processo de delirante fulanização com que, em quase todos os espaços dos meios de comunicação (com especial intensidade nas televisões), tem sido tratada a gestão-Sócrates. Há, por certo, diferenças significativas entre os vários meios de comunicação. Em todo o caso, por todos eles perpassa quase sempre uma crença banalmente teológica: se não existir mais nada para descrever ou explicar os nossos problemas, use-se a palavra "sócrates".
3. É um processo que duplica (em boa verdade, multiplica) o que aconteceu em torno da passagem de Pedro Santana Lopes pelo cargo de primeiro-ministro. Possui o simplismo pueril de um conto de fadas enraizado num princípio de demonização: o Mal vem sempre através da figura de um outro, tão histericamente individualizado que apaga todas as diferenças — e todas as memórias à sua volta. Como se a culpabilização unívoca de alguém nos dispensasse: primeiro, de qualquer forma de consciência colectiva; segundo, do trabalho árduo de lidar com as nossas próprias heranças políticas e históricas.
4. Claro que quase não há espaços de reflexão para lidar com tudo isto. Desde logo, porque vivemos dominados por uma ideologia televisiva que reduz o mundo a "facções". De acordo com tal ideologia, reconhecer as agressões mediáticas contra Santana Lopes era o mesmo que ter um cargo secreto no seu governo. Pela mesma lógica, sugerir apenas que Sócrates tem sido insultado e difamado para além de qualquer minimalismo humano e humanista, só pode significar uma fidelidade beata a todas as medidas de todos os departamentos do governo do Partido Socialista... Não há razoabilidade democrática para lidar com isto. E não tenhamos dúvidas: este é um problema cultural gravíssimo, todos os dias ampliado pelos automatismos da Net (em particular da blogosfera), que está a minar todos os nossos laços sociais.
5. Laços sociais, justamente. No seu fascínio e celeridade — cujos prazeres todos podemos desfrutar — o desenvolvimento das chamadas redes sociais tem servido também, não poucas vezes, para nos dispensar de pensar sobre duas coisas que nunca estão garantidas. A saber:
a) - quando, e como, é que uma rede de contactos adquire consistência de ideias e valores;
b) - quando, e como, é que uma multiplicação de links dá corpo a um núcleo de ideias e valores capaz de sustentar uma ideia de sociedade.
6. Dito isto, há um aspecto que a pobreza do nosso imaginário político tem, pateticamente, ignorado. Tem a ver com o comportamento político de José Sócrates a partir do momento em que se vislumbrou, de forma inequívoca, que o PEC 4 iria ser chumbado na Assembleia da República. Ora, a partir de tal momento, que fez o primeiro-ministro? Muito simplesmente e muito profissionalmente: entrou em campanha eleitoral.
7. Esperava-se (esperava eu, enfim) que políticos e comentadores — quase todos sempre infantilmente à procura de um soluço do primeiro-ministro que possa ser ampliado, manipulado, reencenado até parecer um crime de sangue — aproveitassem finalmente uma boa oportunidade para o criticar, a partir de um pretexto muito claro, no cerne da sua estratégia política. A saber: reconhecendo nos seus passos (até ao anúncio oficial do pedido de ajuda ao FMI) a frieza de uma metodologia que, bem ao contrário das acusações de "vitimização" que lhe têm sido dirigidas, lhe confere o papel incauto de um herói malgré lui — uma "joana-d'arc" que partilha os nossos medos e afaga as nossas misérias em nome de vozes divinas (ou europeias, o que no caso tem o mesmo significado) que não controla.
8. Tudo isto adquire uma dimensão de ópera bufa quando vemos um político, desta vez Pedro Passos Coelho, a oferecer-nos o nosso boletim de psicologia aplicada, garantindo-nos que este pedido de ajuda nos fará viver "com menos angústia". Há, de facto, qualquer coisa de absurdo neste desvio simbólico que, depois de meses e meses de demonização irredutível do primeiro-ministro, nos vem dizer que é possível estar a seu lado, não por razões políticas, mas para não agravar a nossa... angústia.
9. E porque no nosso mundo mediático tudo faz imagem, é inevitável registar o facto de Passos Coelho, nosso muito provável próximo primeiro-ministro, ter surgido na sua comunicação numa nova pose pública, a usar óculos. Possivelmente, trata-se apenas de um objecto habitual no seu dia a dia. Em todo o caso, a sua utilização num momento de tão grande importância simbólica relembra, nem que seja por acidente, um dado muito concreto da nossa cena política: muitos modos de comportamento dos políticos, de todos os partidos, são motivados menos por um genuíno trabalho de natureza política e muito mais pelo peso que os "gestores de imagem" passaram a ter nas nossas representações político-sociais. Daí decorre, aliás, um tema tabu para os protagonistas da cena política: o poder imenso que o marketing adquiriu no esvaziamento de ideias e na configuração mediática dos confrontos políticos.
10. Resta saber se alguma personalidade da classe política, a começar por José Sócrates, terá a coragem rudimentar de, nesta campanha, lidar com a questão gravíssima das abstenções — cerca de 5 milhões de cidadãos em recentes actos eleitorais. Não é preciso ser adivinho para antecipar uma verdade incómoda: os modos correntes de fazer política em Portugal podem agitar os telejornais, exponenciando o seu irresponsável catastrofismo, mas não são necessariamente factores de mobilização do cidadão comum, quer dizer, não fazem o país sentir-se como uma rede social. Na melhor das hipóteses, como sugere com notável sentido de timing o jornal A Bola, mandaremos... na Europa do futebol. Afinal de contas, a democracia está viva e garante-nos o direito a escolhermos as nossas angústias.