segunda-feira, abril 11, 2011

Jean Renoir, clássico e moderno

Nora Gregor e Jean Renoir, em A Regra do Jogo (1939)
O lançamento de A Regra do Jogo, de Jean Renoir, é o grande acontecimento do mercado do DVD nos meses mais recentes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 de Abril), com o título 'Jean Renoir ou o respeito das ideias'.

No mercado português do DVD surgiu, há poucas semanas, um dos clássicos absolutos do cinema francês: A Regra do Jogo (1939), de Jean Renoir, incluído numa caixa com um total de cinco títulos deste cineasta. Se o paralelismo pode fazer sentido (e pode!), este é um filme que está para o cinema europeu como O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles, para a produção clássica de Hollywood. A saber: um momento radical de vitalidade criativa onde podemos vislumbrar, não apenas a complexidade da conjuntura histórica em que nasceu, mas também muitas componentes do cinema do futuro. Por alguma razão os autores da Nova Vaga, de Jean-Luc Godard a François Truffaut, viram em Renoir, não apenas um modelo estético, mas também uma referência ética.
Como seria de esperar, o lançamento de A Regra do Jogo não foi um acontecimento minimamente badalado. É um pormenor, claro, mas sintomático: quando muitos agentes sociais, do espaço televisivo à imprensa cor de rosa, conferem toda a evidência às telenovelas, é apenas normal que um dos maiores artistas europeus do século XX seja ignorado. Entretanto, repitam-se até ao tédio absoluto debates sobre a confiança dos portugueses no futuro...
A Regra do Jogo teve a sua estreia francesa a 8 de Julho de 1939, poucas semanas antes do evento que marca a eclosão da Segunda Guerra Mundial (a invasão da Polónia pelas tropas alemãs, a 1 de Setembro). Não admira, por isso, que o filme tenha entrado na história do cinema também como um objecto premonitório das convulsões que iriam abalar a Europa e o mundo. Ao encenar uma galeria de personagens, senhores e criados, reunidos numa mansão, Renoir elabora uma visão do mundo em que o gosto da festa se apresenta contaminado pela partilha de um crescente desencanto existencial. Podemos, aliás, evocar algumas palavras sábias de Truffaut a propósito de outro clássico de Renoir, A Grande Ilusão (sobre a Primeira Guerra Mundial, realizado dois anos antes): “Jean Renoir não filma directamente ideias, mas homens e mulheres que têm ideias; e não nos convida nem a adoptar nem a julgar essas ideias, sejam elas barrocas ou irrisórias, mas simplesmente a respeitá-las.”
A genial actualidade de A Regra do Jogo passa por essa arte, em que somos todos aprendizes, de lidar com a pluralidade das ideias: qualquer trabalho com as formas (narrativas) pressupõe e implica uma relação particular com a própria dinâmica social. Daí também que seja fundamental não esquecer que há em Renoir um impulso realista, paradoxalmente poético, em que o respeito pelas personagens se confunde com um delicado amor pelos actores. E são todos admiráveis em A Regra do Jogo, incluindo Nora Gregor, Paulette Dubost, Marcel Dalio, Gaston Modot e o próprio Renoir, deixando no seu filme uma figura (“Octave”) que integra o prazer de viver bem e também a mágoa de os seres humanos tão mal saberem viver.