sábado, março 05, 2011

Memórias soltas do "western"


Vivemos numa cultura televisiva do esquecimento em que, nalguns casos, até mesmo as grandes referências populares são secundarizadas: o western, por exemplo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 de Fevereiro), com o título 'Também esquecemos o "western"'.

Já sabemos que, em termos gerais, as televisões empreenderam um contínuo processo de deseducação cinematográfica (e não só). As primeiras vítimas de tal processo não são os filmes que a estupidez reinante, a começar pela blogosfera, designa como “intelectuais” (veja-se a ignorância dominante sobre o cinema português). O que passou a ser objecto de apoteótico desconhecimento são os géneros mais populares da tradição cinematográfica. O western, por exemplo. Hoje em dia tratado quase sempre como coisa pitoresca, com uns brancos a cavalo e uns índios aos gritos, o western representa um património admirável de narrativas e mitologias, de imensa complexidade ideológica e política (quem disse que a cultura popular é simples?), enraizado na história americana da expansão para Oeste, mas cuja filosofia existencial encontrou eco em muitas outras culturas.
O mais recente filme dos irmãos Coen [foto], esse brilhante western que é True Grit/Indomável, mostra, pelo menos, que algum cinema sabe preservar a nobreza da sua história, revisitando-a e relançando-a para os espectadores do presente. É curioso, aliás, que haja todo um estilo jornalístico (?) que faz regularíssimas manchetes com os milhões de dólares acumulados por qualquer blockbuster com muitos “efeitos especiais”, mas recalca a vida financeira dos filmes que não encaixem na pequenez de tais definições. Assim, é notícia que The Green Hornet esteja a chegar à barreira dos 100 milhões, omitindo sempre o facto de ter custado 120... Ao mesmo tempo, não se encontram especiais considerações sobre o facto de True Grit estar à beira dos 170 milhões nas salas dos EUA, tendo custado... 38!
Claro que os custos e receitas de um filme (seja ele qual for) não são uma chave de leitura (seja para o que for). Mas numa conjuntura em que prevalecem os logros mais pueris sobre a vida económica do cinema (e das televisões), acaba por ser normal (isto é: faz parte da norma) promover a ignorância sobre as especificidades temáticas e estéticas do cinema.
Desde as epopeias de John Ford [foto] (1894-1973) até às revisões críticas de Sam Peckinpah (1925-1984), o western foi palco de muitas e fascinantes contradições, espelhando as ânsias redentoras de uma nação à conquista do seu espaço natural, ao mesmo tempo integrando de modo mais ou menos elaborado as contradições (humanas, morais, simbólicas) de tal odisseia. É uma pena que tenham caído quase no esquecimento westerns como os que Randolph Scott (1898-1987) protagonizou sob a direcção de Budd Boetticher (1916-2001). Penso, por exemplo, em Seven Men from Now/Sete Homens para Matar (1956), Buchannan Rides Alone/Têmpera de Herói [cartaz] (1958) ou Ride Lonesome/O Homem que Luta Só (1959). São filmes cuja subtil relação material com a terra e os seus heróis lhes conferiu também um apelo intemporal, da mais fascinante abstracção.