FOTO Fabrizio Marchesi
Marco Ferreri, nome fundamental do cinema italiano das décadas de 1960/70, reaparece graças ao DVD — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 de Fevereiro).
Não vale a pena disfarçar, muito menos encarar a situação com um sorriso mais ou menos paternalista: a maior parte do público mais jovem que vê filmes possui uma visão anedótica do cinema europeu (que, em boa verdade, quase não conhece), oscilando entre a imagem patética de uma indústria alheia a qualquer sofisticação técnica e a ideia de que se trata de um universo dominado por autores “intelectuais” e “pretensiosos”. Como é óbvio, todos os dias tal visão é diligentemente reforçada por uma informação televisiva que tende a reduzir todo o cinema à palavra “Hollywood”, além do mais mascarando a fascinante diversidade interior do cinema americano (clássico e contemporâneo).
Aqui, como noutros domínios das linguagens audiovisuais, nada mudará sem que algo mude nas formas correntes com que a televisão lida com os objectos cinematográficos (a começar pelo facto de muitos filmes terem sido empurrados para o esquecimento de heróicas madrugadas). Resta continuarmos atentos a alternativas, isto é, a estratégias de difusão que vão resistindo a essa massificação pueril do cinema, diversificando a oferta.
Um recentíssimo exemplo da área do DVD parece-me poder simbolizar o que está em jogo: numa caixa com cinco filmes, podemos ver ou rever alguns momentos marcantes da obra de Marco Ferreri (1928-1997), um dos cineastas italianos que abordou de forma mais directa, e também mais provocatória, as transformações sociais e simbólicas dos anos 60/70, contando histórias cujo realismo à flor da pele envolve sempre uma bizarra e sedutora dimensão de parábola.
Dois dos títulos editados são, nesse aspecto, especialmente reveladores: Não Toques na Mulher Branca (1974) apresenta-se como um western de sarcástico simbolismo político, tendo sido rodado em Paris, quando das obras de reconversão da zona de Les Halles; Contos da Loucura Normal (1981), baseado em Charles Bukowski, é um painel apocalíptico das relações homem/mulher, em última instância celebrando-as como um equívoco sem solução. Os outros três títulos que passaram a estar disponíveis em DVD, são: O Refúgio das Crianças (1979), A Semente do Homem (1969) e Dillinger Morreu (1969).
Protagonizado por um admirável Michel Piccoli, Dillinger Morreu merece um destaque muito especial, já que possui uma energia simbólica cujo poder de perturbação transcendeu a sua época. Nele encontramos um cidadão comum que, numa única noite, em sua casa, vive uma aventura de solidão e morte que não pode ser dissociada dos valores (ou da falta deles) das “sociedades de consumo”. Há em Dillinger Morreu (o título vem de uma notícia que o protagonista encontra num jornal de 1934) um misto de filme de família e conto do absurdo que lhe confere uma estranheza inclassificável. Afinal, essa estranheza que, europeia ou americana, resiste aos lugares-comuns de qualquer época.