A época dos Oscars tem também as suas vítimas antecipadas. Entre elas, alguns grandes filmes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 de Janeiro), com o título 'Cinema popular sem populismo'.
Um dos aspectos mais perversos da “época dos Oscars” tem a ver com o apagamento a que certos filmes são sujeitos. Por um lado, os muitos prémios que antecedem a cerimónia da Academia de Hollywood parecem definir uma short list que, depois, os Oscars se limitam a confirmar; por outro lado, há filmes condenados à condição de “parentes pobres”, apenas porque não figuram entre os candidatos ou se ficaram por um número reduzido de nomeações.
Assim acontece com dois títulos que chegaram esta semana [a 27 de Janeiro] às salas portuguesas: 72 Horas, brilhante e labiríntico thriller de Paul Haggis, ele que já demonstrara ser um invulgar narrador, quer como argumentista (escreveu Million Dollar Baby, para Clint Eastwood, em 2004), quer como realizador (com Colisão e No Vale de Elah, respectivamente de 2004 e 2007); e Um Ano Mais, novo exemplo da subtileza do realismo (britânico) de Mike Leigh. 72 Dias não teve uma única nomeação, enquanto Um Ano Mais está “apenas” nomeado na categoria de melhor argumento original (do próprio Leigh).
O caso de Um Ano Mais é tanto mais significativo quanto Mike Leigh [foto], como outros britânicos da mesma geração (lembremos Stephen Frears, o cineasta de A Minha Bela Lavandaria e Ligações Perigosas), tem trabalhado com frequência em produções ligadas a entidades televisivas, sem que isso implique qualquer cedência aos respectivos lugares-comuns. Estamos a falar, afinal, de um país em que os recursos financeiros não explicam tudo, já que tem prevalecido um conceito popular de televisão que rejeita as facilidades mercantis do populismo. No campo da ficção, isso implica uma atenção ao quotidiano que passa por uma genuína paixão pela complexidade afectiva das suas personagens.
Um Ano Mais reage contra a demagogia que obriga a privilegiar as personagens “jovens”, a ponto de as transformar em marionetas dramáticas alheias a qualquer gosto ou forma de inteligência (modelo: Morangos com Açúcar). Já há algum tempo que não se via um filme que, além de se centrar na existência de um casal de idosos, interpretado pelos magníficos Jim Broadbent e Ruth Sheen, sabe interrogar a percepção corrente das gerações, suas relações e conflitos.
Acima de tudo, Mike Leigh recusa tratar a velhice como se a sua existência implicasse um automático paternalismo dramático. Aliás, se há tema transversal ao filme é, justamente, o modo como a pluralidade das relações humanas tende a pôr em causa os pressupostos familiares ou geracionais com que, não poucas vezes, as vivemos, pensamos ou encenamos. Um Ano Mais é mesmo um filme sobre mútuas descobertas, inesperadas e sarcásticas, subtis ou comoventes. É pouco provável que vença o único Oscar para que está nomeado, mas seria uma pena que a sua performance “competitiva” condicionasse a alegria da sua descoberta.