Woody Allen continua a filmar na Europa. Em Vais Conhecer o Homem dos Teus Sonhos, continua também a trabalhar com elencos invulgares [foto de rodagem, com Naomi Watts]. Este texto, resultante de um encontro com jornalistas em Maio de 2010, em Cannes, serviu de base a uma peça publicada no Diário de Notícias (18 de Janeiro).
No Festival de Cannes de 2010, numa das tradicionais mesas-redondas com jornalistas de vários países, Woody Allen apresentou-se com um gag que poderia estar num dos seus filmes: “Estou constipado, por isso agradeço que não me beijem...” Em boa verdade, o autor de Annie Hall limita-se a ser igual a si próprio, recusando qualquer “evolução” para explicar o humor amargo com que retrata os pares londrinos de Vais Conhecer o Homem dos Teus Sonhos: “Sempre vi as coisas assim. As relações humanas são muito difíceis e é preciso ter muita sorte.”
O desencanto vem de longe: “Cresci muito marcado por Nietzsche e Freud. Um dos meus grandes ídolos era Eugene O’Neill. Todos disseram isso melhor do que: apenas conseguimos sobreviver com as nossas ilusões; se não tivermos ilusões, a vida torna-se insuportável. Quando nos aproximamos demasiado das coisas da vida, a mensagem que recebemos é muito desagradável e assustadora. Na verdade, acho que personagens como a que é interpretada por Gemma Jones, com as suas ideias new age, são patetas: se as encontrasse na vida real, de certeza que não teria paciência para as aturar. E, afinal, talvez sejam mais felizes do que eu... São pessoas religiosas que escutam muito os rabis e os padres... Acho-as ridículas, mas é verdade que têm vidas melhores do que eu.”
De onde vêm, então, as ideias para um filme como Vais Conhecer o Homem dos Teus Sonhos? Com um misto de objectividade e auto-ironia, Woody Allen reconhece que “tem muitas ideias, mas nem todas são boas.” Neste caso concreto, lembra que conhece pessoas que recorrem a astrólogos e videntes: “É a coisa mais estúpida do mundo: aceitam receber instruções como se alguém estivesse a organizar o seu futuro... Vivem num desespero para encontrar soluções e respostas. Afinal de contas, há que reconhecer que a psicanálise leva imenso tempo e nem sempre funciona.”
Quer isto dizer que menospreza as pessoas que recorrem a tais “serviços”? Nada disso: “As pessoas querem respostas e não as censuro por isso. Apenas querem alguma magia nas suas vidas... Eu também quero, mas infelizmente não há magia.” Não admira que a hipótese da reencarnação não esteja nas contas existenciais de Woody Allen: “E se eu renasço, daqui a trezentos anos, numa família pobre num país fascista?”
Paradoxalmente, isso não significa que Woody Allen menospreze o que conseguiu na sua própria vida: “Tendo em conta o que é humanamente possível, considero que tenho tido uma vida boa, com saúde e sucesso. Mas acabamos todos por morrer: a vida é curta, violenta, solitária, assustadora... Um dia destes, o sol arde por completo, desaparece e desaparecem todas as estrelas. Desaparece tudo aquilo que encaramos como as nossas instituições culturais: deixa de haver Beethoven, Shakespeare, Miguel Ângelo ou Picasso.”
[continua]