segunda-feira, janeiro 31, 2011

O cinema ou a memórias dos rostos

LILLIAN GISH
O Lírio Quebrado, 1919
A cinefilia passa sempre pelos actores, isto é, confunde-se também como uma imensa genealogia de rostos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 de Janeiro), com o título 'Já não há rostos no cinema?'.

O recente Tron: O Legado é um exemplo revelador dos desastres que podem envolver uma sequela cinematográfica, para mais de um filme tão estimulante no modo como colocava em cena as relações entre seres humanos e computadores (Tron, 1982). Encontramos mesmo um sintoma da mais corrente cegueira tecnológica na grosseira “recuperação” que é feita da figura original do actor Jeff Bridges, com a criação de uma personagem digital que tenta reproduzir o seu rosto de há quase trinta anos.
Não que a figura humana seja artisticamente tabu. Bem pelo contrário: cineastas como Robert Zemeckis (Beowulf, 2007) já demonstraram que, com os novos recursos digitais, se abriu um imenso e sedutor campo expressivo. A questão que aqui se levanta é de outra natureza, uma vez que envolve o fabuloso património de rostos que constitui um capítulo à parte no interior da própria história dos filmes, dos seus temas, estéticas e narrativas.
JESSE EISENBERG
A Rede Social, 2010
Pensemos, por exemplo, na candura dos olhos de Lillian Gish, filmada por David W. Griffith em O Lírio Quebrado (1919). Lembremos a geometria gélida de Greta Garbo em Mata Hari (1931), de George Fitzmaurice, ou a promessa épica que pressentimos em Peter O’Toole, contemplando o deserto em Lawrence da Arábia (1962), de David Lean. Enfim, citemos um momento mais próximo como a cruel transparência do olhar de Nicole Kidman sobre Tom Cruise, em De Olhos Bem Fechados (1999), de Stanley Kubrick. Ou ainda, no também muito recente A Rede Social, de David Fincher, admiremos o misto de frieza e utopia que banha o rosto juvenil de Jesse Eisenberg, numa genial reinvenção da personagem de Mark Zuckerberg, criador do Facebook.
O que sentimos em todas estas figuras (e, em particular, nos seus grandes planos) é que o cinema nos mantém em relação com uma interioridade que não se esgota em nenhuma psicologia, mesmo não sendo dissociável dos seus parâmetros. Em boa verdade, o cinema preserva uma intensidade humana que a linguagem corrente dos rostos (os “talking heads” da televisão) tende a ignorar.
Uma velha e respeitável crença garante-nos que o rosto é o espelho da alma. E a palavra “alma” ajuda-nos sempre a dar nome a tudo aquilo que pressentimos para além dos nomes. Mas talvez possamos acrescentar também que a árvore genealógica dos rostos cinematográficos preserva a verdade única e irredutível de actores e actrizes. Nessa perspectiva, representar frente a uma câmara pode ser mais do que um mero fingimento. Ou melhor: o actor ou a actriz é um ser que, fingindo, nos pode conduzir às imediações de uma verdade perante a qual as nossas palavras hesitam. É para isso, para essas sublimes hesitações, que foram inventadas as imagens.

GRETA GARBO
Mata Hari, 1931