Um grande exercício de cinema... e uma pequena proposta pedagógica para a classe política made in Portugal — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 de Novembro), com o título 'Os "mercados" ou a arte de David Fincher'.
Recentemente, a classe política portuguesa adoptou mais uma patética muleta ideológica, dessas que quase todos, do governo à oposição, dos mais inteligentes aos mais seguidistas, aplicam como se estivessem a revelar-nos a transparência absoluta deste mundo e do outro. Que muleta é essa? Os “mercados”.
De repente, todo o bicho careta nos massacra com a mesma explicação económico-teológica: a nossa crise é produto da continuada ameaça que os “mercados” fazem pairar sobre o incauto cidadão. Se não fosse a sombra dos “mercados”, o humilde lusitano seria um modelo de felicidade... Tudo isto num quotidiano em que é sempre possível encontrar um qualquer político a vociferar a palavra “crise”, mas em que continuamos a ansiar por um (apenas um) que nos ajude, por exemplo, a interpretar o facto de sermos um país à beira do colapso e nos mantermos, heroicamente, como candidatos à organização de um Mundial de Futebol!
Como nunca passa de moda a afirmação segundo a qual “não se percebe nada” daquilo que escrevem os críticos de cinema e, sobretudo, que só escrevem “uns para os outros”, atrevo-me a dirigir a palavra aos nossos bem amados políticos, com uma sugestão sem qualquer mistério teórico: vejam o filme A Rede Social, de David Fincher [foto].
É bem provável que alguns se sintam repelidos pelo facto de se tratar de um produto da máquina imperialista de Hollywood (prometo, por isso, nem sequer esboçar o mais pequeno gesto para lhes chamar a atenção para o facto de o cinema americano continuar a ser dos mais fascinantes de todo o planeta). Em todo o caso, valerá a pena referir que, entre muitas outras coisas, se trata de um filme sobre a circulação do dinheiro. Mais exactamente: Fincher encena a história de Mark Zuckerberg, criador do Facebook, como uma parábola contemporânea sobre o modo como os circuitos virtuais podem ser geradores de clicks, respostas, contra-respostas e redes, numa palavra, dólares.
A Rede Social é também um filme sobre algo de que os políticos, por princípio, não gostam de falar. Ou seja: o facto de não ser possível dividir a existência humana em zonas estanques, colocando de um lado a “objectividade” da política e, do outro, as “divagações” da arte. Zuckerberg é mesmo o centro de uma tragédia shakespeareana (não levem a mal o pretensiosismo, em todo o caso europeu, sempre susceptível de ser aprovado em Bruxelas...) que nos convoca de forma poética, como num espelho: face à sua comovente humanidade, compreendemos que somos feitos de forças, ideias e circuitos que nos transformam em animais políticos. A Rede Social filma a contaminação de todas as componentes da nossa identidade: da indecifrável pulsão sexual à crueza metódica do dinheiro, somos algo mais do que peças abstractas da maldade dos “mercados”. Façam um esforço e, se nada mais tiverem para dizer, vão ao cinema.