Pela primeira vez, Abbas Kiarostami filmou em Itália, na Toscânia: Cópia Certificada [Cannes 2010] funciona como um melodrama imaginário ou sobre a imaginação melodramática — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 de Novembro), com o título 'Masculino e feminino em Itália'.
Com simpática ironia, Abbas Kiarostami descreve [em entrevista a publicar] o facto de haver personagens de cineastas em vários dos seus filmes como uma bizarra falta de imaginação. Tudo se explicaria pela sua incapacidade de inventar figuras de “marceneiros” ou “escritores”... Dito de outro modo: as alusões ao trabalho do cinema nas suas ficções (Close-Up, O Vento Levar-nos-á, etc.) não poderão ser entendidas como tique autobiográfico. Um pouco ao contrário: decorrem de uma ambivalência inerente ao dispositivo cinematográfico. Como se o cinema fosse essa arte capaz de sintetizar todas as artes fascinadas pela questão do duplo, pelos enigmas do ser e não ser, pelo diálogo real ou imaginário entre masculino e feminino.
Daí a estranha familiaridade de Cópia Certificada (e o título, no original Copie Conforme, define desde logo uma paisagem de envolvente duplicidade). Dir-se-ia que Kiarostami quis convocar as delícias tradicionais do melodrama: um par de desconhecidos num cenário deslumbrante. Ou ainda: Juliette Binoche, William Shimell e a Toscânia desenham um triângulo de evidências e enigmas que se confunde com o próprio gosto de viver.
E talvez seja esse o aspecto mais desarmante de Cópia Certificada, afinal a sua serena heterodoxia. Em vez de forçar o seu filme a funcionar como uma tese sobre a crise do romantismo ou o choque cego das culturas, Kiarostami regressa a um primitivismo feliz: nenhuma relação humana contém “a” solução dos nossos problemas existenciais. Em boa verdade, o primeiro e radical problema é não haver relação... É esse o magnífico escândalo de Kiarostami: os telejornais garantem-nos, dia a dia, que chegámos atrasados ao apocalipse; Kiarostami desligou a televisão e, de óculos escuros, sorri.