As más memórias de algumas experiências frente ao grande ecrã, que transformaram a história de vida de figuras notáveis da música em sucessões de acontecimentos às fatias, arrumados no menos inspirado regime docudrama, entremeando obras “conhecidas” e com tempero às bizarrias que as listas de fait divers costumam acumular, faz hoje em dia recear por algo nas periferias do pior quando se fala num novo biopic dedicado a um músico. E, de facto, basta recordar casos dos últimos anos como o foram La Vie En Rose (Edith Piaf), Walk The Line (Johnny Cash) ou Ray (Ray Charles) para pensar que, se calhar, é melhor ir ver o filme na sala ao lado… Uma verdadeira surpresa, Gainsbourg (Vida Heróica), de Joan Safar, foge à regra e faz lembrar que as excepções também existem, como o foram os também recentes I’m Not There (Bob Dylan), Control (Ian Curtis) ou Nowhere Boy (John Lennon).
Serge Gainsbourg, uma das mais marcantes e influentes das figuras que a música popular francesa deu ao mundo, é o centro de uma narrativa que acompanhamos desde os dias da França ocupada durante à II Guerra aos dias de decadência de uma carreira notável, na década dos oitentas. O realizador vem do universo da BD e traz consigo um olhar que cruza assim o real, que toma como ponto de partida e inevitável tutano da narrativa, e elementos de fantasia que o ajudam a catacterizar personagens e situações, usando bonecos e mesmo desenhos, criando assim um olhar pessoal e com um ponto de vista. La Guelue, figura que corresponde à consciência (ora boa, ora má) de Gainsbourg é uma das grandes ideias de um filme que se revela mais que um simples enumerado de factos. Pena que, a meia hora do fim (que corresponde às memórias dos setentas e oitentas), o filme pareça esquecer este “programa” narrativo e visual e entre num quase piloto-automático e tropece no ritmo menos estimulante do docudrama.
Com boas recriações de época apresenta um elenco seguro onde encontramos, além de um convincente Eric Elmosino (Gainsbourg) e de uma espantosa Laetitia Casta (Brigitte Bardot) um surpreendente Claude Chabrol (o editor de Gainsbourg). Integradas na acção, as canções de Gainsbourg surgem depois como marcas que nos indicam o tempo que passa. Dos dias de um Le Poinçonneur des Lilas ou La Javanaise aos “escândalos” com Je T’aime Moi Non Plus e Aux Armes et Caetera, passando por Bonnie and Clyde ou Comic Strip, os sons são texto integrado no contexto, evitando aquela ideia de portos de abrigo para descansar entre recordações que por vezes reconhecemos por outros biopics musicais.