Como fazer chegar um filme (português) aos espectadores (portugueses)? Filme do Desassossego envolve algumas alternativas cuja singularidade vale a pena pensar -- este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 de Outubro), com o título 'O cinema do nosso desassossego'.
João Botelho [foto] decidiu assumir as responsabilidades de distribuição do seu Filme do Desassossego. Em colaboração com a respectiva produtora (Ar de Filmes), o realizador adquiriu um projector digital e está a cumprir uma verdadeira digressão nacional, iniciada quarta-feira [29 de Setembro] em Lisboa (Centro Cultural de Belém), mostrando o filme em mais de três dezenas de salas, na sua maioria auditórios municipais.
A distribuição independente de Filme do Desassossego não pode deixar de arrastar uma interrogação directa (não acusatória, mas pedagógica) dos valores dominantes do mercado. Ou seja: que está a acontecer para que esse mercado passe ao lado de alguns dos títulos mais importantes da actualidade?
É verdade que considero Filme do Desassossego um brilhantíssimo objecto de cinema. Quase trinta anos depois da sua estreia na longa-metragem com Conversa Acabada (1981), Botelho revisita os mundos de Fernando Pessoa, desta vez percorrendo o Livro do Desassossego, de Bernardo Soares: fá-lo como quem elabora uma biografia, não “factual”, mas onírica e vertiginosa, em cumplicidade total com o questionamento da identidade portuguesa.
Seja como for, a discussão das limitações estruturais do mercado cinematográfico não deve ser entendida como uma reivindicação unilateral ligada ao cinema português. Nada disso. Ao longo dos últimos anos, temos assistido a um estreitamento global da oferta que afecta filmes de todos os géneros e das mais variadas origens (incluindo produções americanas).
Na origem de tal estreitamento está o triunfo dos mecanismos de promoção dos blockbusters (e não será necessário repetir que o reconhecimento de tal situação não implica nenhuma recusa dos muitos e fascinantes gestos criativos que a história dos blockbusters contém). Na prática, as forças dominantes do mercado são co-responsáveis na formação de todo um sector de público (maioritário no universo global dos espectadores potenciais) que associa o cinema, não a uma qualquer especificidade cultural, mas sim ao consumo mais ou menos acidental e arbitrário de multiplexes e grandes centros comerciais. Isto sem esquecer que os multiplexes podem ser também uma importante montra de diversidade (veja-se, por exemplo, a modelar evolução da oferta nos cinemas UCI, do El Corte Inglês).
Não se trata de discutir a inteligência ou os gostos dos espectadores. Trata-se, isso sim, de perguntar para onde quer ir um mercado cinematográfico maioritariamente instalado na ilusão das grandes campanhas & grandes sucessos, menosprezando a cartada decisiva da diversidade. O caso da distribuição de Filme do Desassossego não resolve, por si só, nenhum problema de fundo. Mas possui um importante valor simbólico. E tanto mais quanto confere um singular protagonismo a um filme admirável, dos mais originais que, em anos recentes, se fizeram no nosso pais.