sexta-feira, outubro 15, 2010
Cem anos depois
A data tem peso histórico uma vez que representa um daqueles instantes em que se sentiu que em cena entrava qualquer coisa que fazia com que, depois de si, o mundo não mais fosse o mesmo. Um primeiro dia do resto de uma vida. Foi a 25 de Junho de 1910, em Paris. A companhia Les Ballets Russes, dirigida pelo visionário Sergei Diaghilev, estreava uma obra do então praticamente desconhecido (e também russo) Igor Stravinsky, na altura com 28 anos. L’Oiseau de Feu (O Pássaro de Fogo) cativou imediatamente plateia e crítica, que reconhecia ali um entendimento ímpar entre música, coreografia e cenografia, a partitura de Stravinsky abrindo assim caminho não só para uma nova etapa na história da dança, mas para uma nova relação da música com um outro sentido de liberdade na forma de se entender a si mesma, expressando os contornos de personagens e narrativa através das cores de uma orquestração imaginativa e desafiando, sobretudo através dos impressionantes jogos de contrastes, os cânones das linguagens do ritmo (reflexão que viria a aprofundar em composições posteriores).
Esta semana a Orquestra Gulbenkian reencontrou O Pássaro de Fogo de Stravinsky (contudo numa versão reescrita em 1945), assinalando os cem anos sobre esse marcante episódio que, de certa forma, marcou um dos instantes de afirmação do que viria a ser a música do século XX. Firme na condução, uma brilhante Joana Carneiro e uma orquestra uma vez mais em grande forma revisitaram esta obra de Stravinsky precisamente sublinhando de forma notável as características narrativas e cénicas da música, do viço da Dança infernal de Katschei aos delicados contornos da Canção de Embalar. A noite contou ainda com um 4º Concerto Para Piano e Orquestra de Beethoven, com Jean-Bernard Pommier como solista (muito aplaudido, respondendo então com um inesperado encore). E com o curioso Playing Ludwig, obra de 2002 do português Filipe Pires, no qual se explora, e com um certo bom humor, uma sucessão do que, no próprio programa do concerto, se descreve como “alguns dos mais frequentes lugares-comuns da música dos finais do século XVIII e princípios do seguinte”, Beethoven sendo de resto um dos nomes a que a obra alude.