Vencedor da 14ª edição do Queer Lisboa, O Último Verão da Boyita, agora lançado nas salas, é a história de um rapaz (aliás, rapariga) que não se reconhece no seu corpo de rapariga (aliás, rapaz)... E não se trata apenas de um labirinto social ou um drama familiar. É, acima de tudo, uma tragédia interior: quem sou eu?, pergunta ele/ela — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 de Outubro), com o título 'Drama entre masculino e feminino'.
Quando O Segredos dos Seus Olhos, de Juan José Campanella, venceu o Oscar de melhor filme estrangeiro, não pudemos deixar de sentir: afinal, na Argentina também há cinema... Felizmente, em anos recentes, o mercado português tem mostrado uma (pequena) abertura para as produções da América do Sul, em particular de origem argentina, desde logo através da presença da obra notável de Lucrecia Martel (último título estreado: A Mulher sem Cabeça). Com O Último Verão da Boyita, deparamos com um filme discreto e subtil que importa não reduzir ao cliché da “descoberta” da sexualidade.
É óbvio que tudo passa pelos enigmas do sexo e pelo modo como se insinuam nas relações de duas crianças, Jorgelina (Guadalope Alonso) e Mario (Nicolás Treise): ela a tentar compreender os segredos da vida campestre, ele emergindo como uma espécie de símbolo involuntário dos seus valores. Mas o trabalho da argumentista e realizadora Julia Solomonoff evita encerrar-se no dispositivo mais esquemático da descoberta “interior”. Cenas como aquelas em que, num misto de curiosidade e pavor, Jorgelina descobre as imagens dos livros sobre anatomia sexual são momentos em que o filme desenha os contornos precisos do seu drama interior: cada personagem terá de se confrontar com as representações (gráficas, biológicas, morais) que recebe do exterior.
Nesta perspectiva, Mario surge como uma figura de raiz eminentemente trágica, dividido que está entre a verdade feminina do seu corpo e o destino masculino que a autoridade paterna lhe impõe. O Último Verão da Boyita [trailer aqui em baixo] é um filme sobre a ambiguidade dessa vivência, tanto mais tocante quanto evita encerrar-se num final moralista ou “redentor”.