Como é que as imagens televisivas se apropriaram do que aconteceu no dia da leitura da sentença do caso Casa Pia? Eis uma pergunta que envolve toda a nossa cultura política — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 de Setembro), com o título 'O campus das televisões'.
No meio da histeria televisiva de sexta-feira [3 de Setembro] em torno do caso Casa Pia, várias vozes tentaram chamar a atenção para uma urgência: a de reflectir sobre o seu tratamento jornalístico ao longo dos últimos oito anos. Foram sempre silenciadas: eram engolidas pelo ruído mediático ou, quando muito, era-lhes contraposto algo que contornava a questão.
Algumas dessas vozes tentavam desviar as atenções de outras questões para elas mais incómodas? Talvez. Mas importa colocar o problema superando a lógica televisiva que demoniza tudo o que possa por em causa o seu “universalismo”, excluindo a discussão dos seus mecanismos de comunicação, quer dizer, das suas linguagens.
Em boa verdade, a maioria dos profissionais de televisão não olha para as imagens com que trabalha. Não as vê enquanto imagens, limitando-se a produzi-las e difundi-las como se fossem uma emanação natural daquilo que noticiam. Na sexta-feira, perderam mais uma oportunidade de integrar alguns preciosos instrumentos de reflexão sobre um tema que tanto os preocupa. A saber: a crise da justiça e, em particular, a fragilização dos tribunais.
Bastava olhar com um mínimo de disponibilidade para as imagens do Campus da Justiça. Desenhavam um ritual de pornografia colectiva: os edifícios do Campus estavam transformados num cenário felliniano em que advogados, arguidos, jornalistas, polícias e mirones, todos apareciam como figurantes de uma promiscuidade onde, com a mesma “naturalidade”, se sucediam as figuras hieráticas dos juízes e os que relaxavam a fumar um cigarro na relva. Nessa paisagem, a palavra do tribunal era tratada exactamente com o mesmo valor de “reportagem” que o depoimento de um qualquer anónimo a passar por ali, divertido com a confusão, gozando os seus 15 segundos de fama.
Será que o próprio aparelho da justiça é alheio a este processo? Não creio, quanto mais não seja por entregar, assim, as suas imagens à erosão televisiva. Tal cedência é todos os dias consagrada pelo infantilismo cego dos profissionais televisivos: as coisas estão a acontecer, não estão?... De facto, não estão. Não estão, pelo menos, com a candura que tentam emprestar a uma realidade social em que são actores principais e sobre a qual não querem pensar. O que as imagens do Campus da Justiça confirmavam, e de forma assustadoramente cristalina, é que o dispositivo televisivo não é, nunca foi, uma máquina de “transcrição”: ele é, em tudo e por tudo, um dispositivo de produção de realidade, quer dizer, algo que integra e transfigura o espaço em que vivemos e o modo como o habitamos, conhecemos ou desconhecemos.
O espaço? Sim: o espaço? O espaço como uma grande construção política foi tema recorrente de génios do cinema como Fritz Lang, Roberto Rossellini ou Stanley Kubrick. Que as televisões estejam contra a sua herança, eis um índice revelador de uma profunda degenerescência cultural e humana.