A comédia do absurdo está de volta. E isso é uma boa notícia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 de Setembro), com o título 'Hollywood reencontra a comédia'.
Sinal dos tempos: a infantilização galopante do mercado cinematográfico (criando toda uma comunidade de espectadores que confunde a especificidade do cinema com os “efeitos especiais”) tem deslocado para a ficção televisiva, sobretudo para as séries, os temas realmente adultos. Não em Portugal, entenda-se, onde o poder da telenovela tende para a ditadura estética e narrativa. Mas, por exemplo, nos EUA. Para nos ficarmos por um exemplo óbvio, lembremos a excelência de uma série como Mad Men (cuja terceira temporada estará na RTP2, a partir de 29 de Outubro).
Algo de semelhante aconteceu com o género cómico. Mesmo sem discutirmos o carácter paradoxalmente adulto que a comédia pode envolver, não tem sido muito frequente encontrar no cinema americano dos últimos anos o requinte de uma série televisiva como 30 Rock, criada por Tina Fey. Em boa verdade, e para além de contribuições muito particulares (pensemos, por exemplo, nos filmes de Judd Apatow), acontece que a comédia sofre das mesmas limitações que, já há várias décadas, atingiu grandes géneros clássicos como o musical: deixou de ser uma área regular de produção.
Daí que valha a pena destacar a estreia de Jantar de idiotas, uma comédia protagonizada por Steve Carell e Paul Rudd, com realização de Jay Roach. Há neste filme um espírito e um estilo que evocam memórias de uma idade de ouro em que o cómico era um factor central em toda a dinâmica de produção dos grandes estúdios de Hollywood, normalmente ancorada em alguns actores emblemáticos.
A partir daí, convenhamos, surgem os mais desconcertantes paradoxos. Desde logo porque estamos perante um filme inspirado num grande sucesso francês (Um Jantar de Palermas, 1998), centrado no mesmo pretexto narrativo: uma empresa cuja administração promove um jantar anual para humilhar alguns “idiotas” convidados... Depois, porque Steve Carell, compondo de forma brilhante o principal “idiota”, é tudo menos uma estrela gerada pelo cinema: do Daily Show de Jon Stewart ao protagonismo da versão americana da série The Office, a sua imagem de marca confunde-se, em tudo e por tudo, com a televisão.
Paradoxo final: a lógica de absurdo do humor de Jantar de Idiotas, incluindo as suas sarcásticas componentes de crítica social, é indissociável de uma tradição muito nobre, essa sim visceralmente cinematográfica, que tem nos filmes dos Irmãos Marx uma referência nuclear. E um aspecto muito curioso neste processo de reencontro da comédia americana com as suas raízes tem a ver com a (re)valorização dos diálogos. Já não se trata de injectar “anedotas” naquilo que as personagens dizem, mas sim de recuperar a palavra como matéria perversa que cruza a objectividade do mundo e a subjectividade de qualquer forma de percepção. Em última análise, a comédia interroga o modo como olhamos, descrevemos e avaliamos o mundo à nossa volta.