segunda-feira, setembro 20, 2010

Novas aventuras de Antonioni

Reencontro com a obra de Michelangelo Antonioni a pretexto do lançamento em DVD de A Aventura (1960) -- este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 de Setembro).

Chegou ao mercado do DVD A Aventura (1960), um dos clássicos absolutos da filmografia de Michelangelo Antonioni e também um título essencial para compreendermos as muitas revoluções, temáticas e estéticas, que marcaram a transição entre os ainda clássicos anos 50 e as convulsões da década de 60.
Não pude deixar de me recordar de uma situação recente no concurso Quem Quer Ser Milionário (RTP1) quando um concorrente, confrontado com quatro opções para identificar Antonioni, optou por considerá-lo um... chefe mafioso. Não me interpretem mal: não se trata de “julgar” as competências do concorrente nem sequer, neste momento, de discutir o conceito de “cultura geral” que atravessa todas as televisões. Trata-se, isso sim, de verificar um facto muito objectivo: no horário nobre de qualquer canal de televisão tornou-se impossível encontrar um filme de Antonioni, um dos génios da história europeia do cinema; em todo o caso, em tal horário o seu nome pode ser objecto de atribulações como a que descrevi.
Que nos diz isto? Que não se desvaneceu a maldição que, há 50 anos, se abateu sobre a obra-prima de Antonioni. Em Cannes, por exemplo, é certo que A Aventura acabou por receber o Prémio do Júri (presidido por Georges Simenon), mas não sem que o realizador e a sua actriz principal, Monica Vitti, se vissem forçados a abandonar a projecção oficial devido à violência dos apupos de muitos espectadores. Paradoxo irónico: o filme viria a ser motivo de muita chacota e também um significativo sucesso internacional.
Com A Aventura, mudou, antes de tudo o mais, o modo de retratar o quotidiano e a sua banalidade. Antonioni parte de um fait divers (o desaparecimento de uma mulher durante um cruzeiro no Mediterrâneo) para elaborar uma teia de acontecimentos que tende a valorizar o que, em muitas narrativas tradicionais, era entendido como “tempo morto”. Por alguma razão, A Aventura atraiu o preconceito que, ciclicamente, se abate sobre os filmes acusados de “lentidão”: bem pelo contrário, Antonioni mostrava que cada instante humano está habitado por uma vertigem de incertezas e mágoas e isso é, para muitos espectadores, imediato objecto de rejeição.
Em boa verdade, o “escândalo” de A Aventura não mudou: vivemos (ou obrigam-nos a viver) num mundo em que a retórica repetitiva das telenovelas desfruta de todo o poder mediático. Face ao determinismo psicológico e moral que domina as ficções televisivas, a lição de Antonioni mantém toda a pertinência. Para ele, importa lidar com o descalabro afectivo de um mundo iludido pelas promessas de felicidade da chamada sociedade de consumo. Mais do que isso: esse é um mundo atravessado por valores sociais subjugados à noção de que “ser famoso” constitui o supremo modo de afirmação individual... Será preciso sublinhar a trágica actualidade de Antonioni?