domingo, setembro 26, 2010

Da história à ficção "telenovelesca"


A memória histórica reduzida ao pitoresco da "reconstituição"; a simplificação moralista dos conflitos dramáticos; enfim, um "naturalismo" alheado de qualquer discussão sobre a especificidade cinematográfica. Dito de outro modo: Assalto ao Santo Maria é um filme que confirma que a linguagem de algum cinema vive dominada pelos mais banais valores televisivos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 de Setembro), com o título 'O cinema rendido à televisão'.

Ciclicamente, algum cinema português reflecte as mais pueris ilusões de grandiosidade. Não falo de ousadia temática ou risco estético. Falo apenas da mais dramática ausência de pragmatismo de produção. Ou seja: da ilusão de visar um modelo de espectáculo para o qual, independentemente da dedicação e do talento dos envolvidos, não se possuem meios materiais adequados.
Infelizmente, Assalto ao Santa Maria, de Francisco Manso, é mais um exemplo de tais ilusões: trata-se de evocar a “Operação Dulcineia”, liderada por Henrique Galvão, tentando “reconstituir” o desvio do paquete Santa Maria com meios de uma pequenez confrangedora, para mais limitados por uma visão da história e dos seus protagonistas que nunca se liberta das convenções mais banais do mais banal dos telefilmes.
É bem verdade que a história do cinema ensina que não existe nenhuma proporção directa entre a dimensão dos meios e a excelência dos resultados. Afinal de contas, a apocalíptica cena de batalha do genial Badaladas da Meia-Noite (1965), de Orson Welles, terá sido rodada com menos de duas dezenas de cavalos... Resta saber se basta evocar o salazarismo como um jogo de marionetas entre revolucionários “puros” e reaccionários “impuros”. E também se a injecção de um romance “telenovelesco” é uma boa estratégia de ficção para lidar com a complexidade da nossa história política e militar.
Há em Assalto ao Santa Maria a evidente boa vontade de querer revalorizar a nossa memória colectiva. Mas como garantir tal projecto sem um ponto de vista consistente e, acima de tudo, aplicando o cinema como uma derivação passiva da mais rudimentar televisão?