segunda-feira, setembro 27, 2010

A cinefilia de Manuel Cintra Ferreira

Programador da Cinemateca Portuguesa e crítico de cinema, Manuel Cintra Ferreira é o patrono de um invulgar e sedutor ciclo de clássicos (na Cinemateca, a partir do dia 1) — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 de Setembro).

Manuel Cintra Ferreira [foto à esquerda], o mais antigo programador em actividade da Cinemateca Portuguesa (crítico do semanário Expresso), acaba de ter um singular gesto de amor pela casa em que trabalha: ofereceu, para a respectiva colecção, duas cópias de dois dos seus filmes de eleição. São eles The Searchers/A Desaparecida (1956), de John Ford, e The Thief of Bagdad/O Ladrão de Bagdad (1940), de Michael Powell, Ludwig Berger e Tim Whelan.
Retribuindo o gesto, a Cinemateca apresenta as novas cópias num pequeno ciclo a que deu o nome sugestivo de “Presentes de Manuel Cintra Ferreira” (primeira sessão com o filme de Ford, 1 de Outubro, 19h00). Nele se darão a ver mais nove filmes que podem resumir a relação pessoal de Cintra com a história e a mitologia do cinema. Entre os eleitos, vale a pena destacar uma raridade de Budd Boetticher (The Bullfighter and the Lady/Homens na Arena, 1951) e um clássico de Totò (Guardie e Ladri/Policia e Ladrão, 1951).
Numa altura em que a especificidade da crítica de cinema se encontra tão menosprezada (na blogosfera, nascem críticos como cogumelos e o insulto impera como “prova de verdade”), vale a pena manifestar uma cumplicidade militante com a cinefilia de Cintra Ferreira. Não por mero gosto da homenagem. Nem apenas porque recordo com prazer os trabalhos em que colaborámos, nos anos 80/90, no Expresso. Muito menos por qualquer coincidência universal de visões, leituras ou interpretações: conhecemos bem esse preconceito estúpido que define “a crítica” como um bando de intelectuais que se rege por um discurso único e unívoco.
Trata-se apenas de enaltecer a dimensão mais genuína dessa cinefilia: não a de “adorar” o cinema como uma colecção de efeitos especiais fabricados para produzir clips televisivos mais ou menos vistosos, mas sim de ver (e viver) os filmes como uma paisagem inerente à própria condição humana.
Na mitologia pessoal do Cintra, um filme como A Desaparecida corresponde, creio eu, a uma espécie de cristalização mágica das componentes dessa paisagem. O seu humanismo afigura-se tanto mais importante quanto a ideologia televisiva trabalha todos os dias para que o desprezemos. Vivemos, aliás, num tempo em que se tenta discutir a questão da “identidade” através de filmes com personagens e situações que se reduzem a cromos televisivos (em sentido literal ou irónico).
O que encontramos no cinema de Ford [foto à direita], tal como em Boetticher ou Totò (Raoul Walsh ou Jacques Tourneur, para citarmos mais dois autores representados no ciclo), é essa intensidade única de algo que circula pelos corpos e pelas imagens, celebrando a pluralidade infinita do factor humano. Raízes de tudo isso? As mais prosaicas. Vale a pena lembrar o que John Ford disse quando, tentando indagar das suas motivações ideológicas, alguém lhe perguntou como chegara a Hollywood. Respondeu ele: “De comboio”.