segunda-feira, agosto 02, 2010

O caso Freeport revisto por Orson Welles

Orson Welles deixou-nos a herança de um olhar sensível às ambivalências e fragilidades de qualquer processo de produção de verdade — também no jornalismo. Mas o caso Freeport tem muito pouco a ver com a cinefilia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 de Agosto), com o título 'O caso Freeport nunca vai acabar'.

As televisões, o poder político e o poder judicial vivem numa aliança cega. Em sentido literal: nenhum deles vê, ou quer ver (o que acaba por produzir efeitos semelhantes), como têm empurrado o país para uma existência de metódica e quotidiana angústia. Na prática, trata-se de renovar todos os dias a mesma sensação cruel: nada acaba, nada pode acabar.
O julgamento da Casa Pia, o caso Freeport ou a saga de Carlos Queiroz à frente da selecção nacional de futebol... nada acaba, nada pode acabar. Daí também, em todos os domínios da vida colectiva, a proliferação de clones de Gilberto Madaíl [foto], remetendo tudo para o próximo jogo ou para o campeonato em que queremos gastar alegremente mais umas centenas de milhões de euros: falhámos hoje, andamos há anos a falhar, mas... estamos a caminho de ser campeões do mundo!
Na ressaca das recentes notícias sobre o processo Freeport, ilibando o primeiro-ministro José Sócrates, perpassou pelas televisões um sinal revelador da inconsciência mediática que nos domina. Assim, de forma mais ou menos implícita, vários discursos reconheceram que, afinal, tinham sido cometidos alguns “excessos” jornalísticos...
É um reconhecimento cuja pusilanimidade não pode deixar de suscitar uma repetida reflexão. Desde logo por razões deontológicas: as muitas reportagens em que jornalistas se passeavam em frente de casas ou edifícios frequentados por “suspeitos”, construindo uma visão do mundo ancorada nos valores mais rasteiros da insinuação e da difamação, foram um pouco mais que “excessos”. Na verdade, foram a expressão de um estilo que, todos os dias, continua a degradar o universo jornalístico e a sua relação com os consumidores.
Mas há uma razão filosófica de fundo para nos demarcarmos da piedosa purificação que invadiu alguns comentários dos últimos dias. O subtexto tem sido este: “Coitado do Sócrates, afinal estava inocente e os jornalistas andaram por aí a espalhar coisas sem fundamento...” Ora, a questão é rigorosamente inversa: o valor social do jornalismo não se mede por uma espécie de tômbola judicial em que se promove uma percepção histérica de factos (ou suposições) e umas vezes se acerta, outras não... Dito de forma muito clara: mesmo que se tivesse provado que o primeiro-ministro [foto] era um perigoso assaltante a monte, as formas mais extremistas do jornalismo praticado em torno do caso Freeport não deixariam de ilustrar uma imensa e cada vez mais preocupante miséria existencial.
No seu clássico de 1941, Citizen Kane/O Mundo a Seus Pés, Orson Welles ensinou-nos um princípio rudimentar: o de que a verdade é sempre uma arquitectura de coisas frágeis e instáveis cuja dinâmica não é propriedade de ninguém. Era também, curiosamente, um filme sobre o jornalismo. Mas quem se lembra de Orson Welles?... Não será melhor reabrir o processo e convocá-lo como testemunha?