O golo de Frank Lampard anulado no Alemanha-Inglaterra foi um momento radical de televisão. E tanto mais quanto, através dele, deparamos com o melhor e o pior das imagens e do imaginário televisivo -- este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 de Julho), com o título 'O golo de Frank Lampard'.
Quando vemos e revemos o golo de Frank Lampard anulado pelo árbitro do Alemanha-Inglaterra, compreendemos que as imagens de televisão podem ter uma espantosa capacidade de esclarecimento: a bola entrou, inequivocamente, na baliza. Assim, no debate sobre a introdução de câmaras como auxiliares das arbitragens do futebol, torna-se inevitável reconhecer um princípio básico: tal complemento técnico pode ajudar a superar dúvidas suscitadas por lances deste género.
Curiosamente, o evento não desencadeou nenhuma avalancha de insinuações sobre a integridade moral do árbitro e dos seus auxiliares. O que nos permite supor que há distintas morais televisivas para lidar com as peripécias do futebol: internamente, a prioridade parece ser a de acicatar clubismos e rivalidades mais ou menos irracionais; quando passamos para o domínio do futebol internacional, nomeadamente para um campeonato mundial, tornamo-nos ascetas do pensamento, procuramos o nosso momento de zen (para utilizar a deliciosa terminologia de Jon Stewart, no seu Daily Show) e discutimos, metodicamente, a percepção dos factos e a sua reprodução televisiva.
Tudo isto seria apenas anedótico se não arrastasse uma ilusão infinitamente maior: para o mais banal jornalismo televisivo, o golo mal anulado a Lampard emerge como sintoma da “pureza” cognitiva da televisão. De facto, generalizou-se a ideia (?) segundo a qual uma câmara de televisão em frente a um evento, seja ele qual for, funciona como um filtro automático e indiscutível de “verdade”. Como se usar uma câmara, desde a escala das imagens até à duração de qualquer registo, não implicasse escolhas, selectividade, numa palavra, responsabilidade...
O que é grave não é que as câmaras permitam detectar os golos do futebol. É que essas mesmas câmaras finjam que existem como um altar de revelação de todos os sentidos ocultos do mundo. Afinal de contas, foi a televisão que inventou a grosseria da reality TV, enquanto o cinema, há mais de um século, não pára de discutir e reavaliar as dificuldades e limites de qualquer realismo.