sábado, maio 08, 2010

Entre o mundo real e a fantasia

Este texto foi originalmente publicado na edição de 10 de Abril do DN Gente com o título 'Quando a Ficção Assombra a Realidade'.

Foi o próprio Dino Buzzati (1906-1972) quem, um dia, explicou que a fantasia deveria estar o mais perto possível do jornalismo... E no fundo não podia ter encontrado melhor forma de, em apenas uma mão-cheia de palavras, descrever o que afinal foi toda uma vida essencialmente dedicada à escrita. Escritor e jornalista (com longa carreira sobretudo ligada ao Corriere della Sera), mas também poeta e pintor, Dino Buzzati é um dos grandes autores italianos do século XX, a sua obra tem vindo a conhecer, de há cinco anos para cá, regular edição na Cavalo de Ferro, que acaba de publicar O Grande Retrato.

A sua escrita é directa, muito clara e enxuta, revelando um universo interessado pelos domínios do fantástico, confrontando figuras aparentemente banais com situações bizarras e expressando um interesse na reflexão sobre a relação entre o homem e a máquina. De resto, e como o cita Lawrence Venutti na introdução de uma antologia de contos publicada em 1983, Buzzati defendia que "a eficácia de uma história fantástica depende do facto de ser relatada do modo mais simples e prático possível".
Terceiro filho de uma família que em 1913 somaria quatro irmãos, Dino Buzzati Traverso nasceu em Belluno (San Pellegrino). Dos primeiros anos de vida guardou memórias "de bravias montanhas", às quais se juntam depois "o património das recordações juvenis e a cidade de Milão", onde a sua família residia no Inverno. Em adolescente fascina-o a egiptologia, numa mesma altura em que lê Poe e Hoffmann. Começa a escrever em 1920. Primeiro um poema em prosa, pouco depois um diário que, salvo pontual pausa nos anos 60, manterá até ao fim da vida.

O pragmatismo, que revelará mais tarde como jornalista e escritor, já se manifesta quando, em 1924, escreve ao amigo Arturo Brambilla, explicando-lhe a satisfação que sentia por ter passado nos exames finais: "Quero lá saber das notas mais ou menos boas", comenta. Inscreve-se na Faculdade de Direito (termina o curso em 1928), mas pelo meio faz o serviço militar e pede emprego ao Corriere della Sera, onde entra como estagiário. Começa por fazer a ronda das esquadras, passando a redactor efectivo em 1929. Numa das suas primeiras tarefas vê-se como adjunto do crítico de música titular. O jornalista, que estudara violino em tempos, acompanha assim a programação menor do Scala, e ganha uma vivência com o espaço que, mais tarde, projectaria no conto Pânico no Scala. Alpinista amador, inspira-se na montanha para escrever Bàrnabo delle Montagne, que publica em 1934, o mesmo ano em que faz as primeiras leituras de Kafka.

Imagem do filme O Deserto dos Tártaros

O mundo em ebulição transforma-o, em 1939, em repórter de guerra. Fica um ano na Etiópia, depois acompanha várias situa-ções de batalha. E é em pleno conflito, editando as páginas em Adis Abeba, enviando-as ao editor por correio, que prepara o lançamento de O Deserto dos Tártaros, romance de 1940 que coloca o seu nome sob maiores atenções (mais tarde adaptado ao cinema por Valerio Zurlini), assinando pouco depois com a Mondadori, onde publicará alguns dos seus títulos de referência ao longo dos anos seguintes.

Divide então o tempo entre as reportagens (numa delas acompanha a volta a Itália em ciclismo), a crítica de arte, o trabalho como editor no jornal e a publicação de ficção. E aqui define, aos poucos, um espaço muito pessoal que o demarca entre os demais do seu tempo.