sábado, maio 01, 2010

Eisenstein — um olhar português

Rever os filmes é também repensar os seus contextos: por exemplo, O Couraçado Potemkine estreado em Portugal a 1 de Maio de 1974 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (26 de Abril), com o título '36 anos depois de Eisenstein'.

Há 36 anos, na sequência do 25 de Abril, o filme O Couraçado Potemkine (1925), de Sergei Eisenstein, foi o primeiro a ser lançado como símbolo do cinema que estava interdito pelo regime do Estado Novo (a estreia ocorreu no cinema Império, em Lisboa, a 1 de Maio de 1974). Hoje em dia, a percepção da conjuntura em que tal aconteceu passou a estar condicionada por todo um conjunto de clichés ideológicos e morais. O primeiro consiste em reduzir o pré-25 de Abril a uma paisagem cinzenta, sem vida, esgotada numa inércia quotidiana, policiada e sem frestas: dir-se-ia que ninguém viveu, ninguém amou, ninguém desejou. O segundo cliché, de sinal contrário (mas só na aparência), traduz-se na generalização moralista da palavra “censura”, frequentemente promovida à condição de descritivo de toda e qualquer tensão social em que se manifeste alguma forma de resistência.
Claro que, 36 anos depois, não é popular tentar reflectir sobre esta dinâmica. É mais cómodo encerrarmo-nos numa dicotomia “libertária”, supostamente legitimada pelos ideais de Abril. Consequências práticas? Em primeiro lugar, uma visão anedótica da ditadura salazarista, balizada pelo simplismo de um imaginário televisivo que se compraz em comunicar através de ficções, debates e concursos drasticamente formatados: passou-se da celebração comunista (“um tempo de heróis”) para a neurose catastrofista (“um rol de vítimas”). Depois, um entendimento pueril e “naturalista” do nosso presente, implicitamente descrito como um tempo de redentora transparência, induzida pela própria saturação mediática que nos impede de aceder a zonas de reflexão e distanciamento.
A herança mais forte que ficou da estreia de O Couraçado Potemkine tem muito pouco, ou mesmo nada, a ver com a eventual caracterização do filme como símbolo de um imaginário de “esquerda”. Aliás, as arbitrariedades a que o regime soviético sujeitou Eisenstein são reveladoras do modo como o seu sistema narrativo, marcado por uma sensualidade impossível de domar por qualquer parâmetro ideológico, transcende o mero enquadramento político (que, como é óbvio, também o marcou de forma especialmente intensa). É uma herança “incompreensível” para muitos espectadores contemporâneos, educados pela facilidade ilusória da Internet e dos acessos “universais”. É, de forma radical, a herança do desejo de ver.
Ora, o desejo de ver tende a ser substituído pela ânsia de confirmar. O marketing de muitos filmes (mesmo os mais geniais) passou a favorecer um imaginário pobremente consumista: vai-se ao cinema, não para lidar com a surpresa de ver ou a dificuldade de compreender, mas apenas para duplicar um “sentido” previamente enunciado. Não que os espectadores de há 36 anos fossem menos ignorantes ou mais inteligentes. Em todo o caso, agora, por vezes, o cinema passou a ser vivido como o contrário da sua origem: um mero reconhecimento de imagens prévias.