A ideia não é exactamente a de levar toda uma plateia a viver um serão de viagens no tempo sem sair do seu lugar e sem recurso a uma qualquer engenhoca que, a saber, ainda está por inventar. Mas na prática é o que vai acontecer hoje, pelas 21.00, no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian (Lisboa), num concerto que juntará compositores da Idade Média a obras do nosso contemporâneo Arvo Pärt, com a presença em palco do Theatre of Voices (na imagem) e do NYYD Quartet, sob direcção de Paul Hillier, um dos mais destacados vultos da música coral no presente (e maestro titular do coro da Casa da Música, no Porto).
A noção de ponte entre tempos é assim central a este concerto. Ou, como explica o próprio Paul Hillier em texto do programa, o que se apresentará na Gulbenkian é "uma síntese entre Pärt e música medieval". As obras mais antigas, todas elas de origem medieval, que serão intercaladas entre peças de Arvo Pärt foram "escolhidas no sentido de reflectirem a influência desse mundo sonoro na música" do compositor "e na técnica por ele criada e designada tintinnabuli", explica Paul Hillier. E acrescenta ainda, no mesmo texto do programa, que "não existe talvez outro tipo de música que se adapte com tanta perfeição à música de Pärt como este tipo de selecção de cantochão e polifonia inicial". Daquele que é talvez o mais universalmente reconhecido dos compositores contemporâneos nascidos na Estónia, o concerto de amanhã escutará não apenas o Stabat Mater (1985) e o Wallfahrslied (1984), como, e em primeira audição em Portugal (nesta sua nova versão), a sua Missa Syllabica (na sua forma original surgiu em 1977). Esta será apresentada, intercalada com uma série de obras de compositores da Idade Média como Pérotin (c. 1200), Guillaume de Machaut (c.1300-1377) e Guillaume Dufay (c. 1397-1474), aos quais se juntarão ainda composições de dois anónimos, dos séculos XI e XIV.
Arvo Pärt, que de certa forma é assim uma figura central neste concerto, nasceu num país independente, mas cresceu sob poder soviético, depois de a Estónia ser integrada na URSS. As suas primeiras obras mostravam essencialmente um interesse por compositores como Shostakovich, Prokofiev ou Schoenberg... A sua relação com o poder soviético não era, contudo, tranquila e alguns dos trabalhos foram inclusivamente alvo de censura. Os conflitos daí nascidos contribuíram para um processo que culminaria, em finais dos anos 70, por levá-lo a um repensar profundo das suas ideias musicais. Em 1980 deixou a URSS, mudando-se primeiro para a Áustria e mais tarde para Berlim (Alemanha), onde ainda hoje reside. Data desses tempos um período de silêncio meditativo, durante o qual estudou a fundo o cantochão e as primeiras formas de polifonia. Da reflexão que se seguiu surgiram novos caminhos musicais, entre as quais os que conduziram o estilo que descreveu como tintinnabuli (porque traduz sons que sugerem discretos sinos). A sua música mostra, desde essa etapa, harmonias simples, inspiradas pela memória da música medieval. E com o tempo Pärt acabou mesmo por dedicar atenção ao canto, trabalhando a ideia de uma nova música religiosa.