domingo, janeiro 17, 2010

Outra forma de escutar o Brasil

Este texto foi publicado na edição do DN Gente de 9 de Janeiro com o título ‘Uma Obra para Saudar o Brasil’.

Num espaço muito pessoal, algures entre o jazz, as tradições clássica e heranças populares, mora a música do brasileiro Egberto Gismonti. Não é portanto de estranhar que, no disco que agora assinala o seu reencontro com a edição em nome próprio (na ECM onde tem assinado parte significativa da sua obra), proponha uma celebração da miscigenação, talvez a mais significativa palavra-chave de toda a cultura musical brasileira.

O álbum tem por título Saudações e promove dois encontros essenciais. Um deles com todo um conjunto de espaços culturais que definem uma identidade(materializando-se claramente na obra sinfónica Sertões Veredas - Tributo à Miscigenação). O outro, e em partilha com o seu filho Alexandre Gismonti (estão juntos na foto em baixo), é um olhar sobre a sua obra, como se vista por um retrovisor. Ou seja, reinventando velhas composições sobre novos arranjos, olhando em frente, mas tendo em conta todo um passado que não deixa nunca de ser ainda hoje um espaço de reflexão.
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Egberto Gismonti é internacionalmente reconhecido como um dos grandes nomes da música brasileira do século XX. Filho de uma mãe siciliana e de um pai com a cidade de Beirute (Líbano) no seu bilhete de identidade, nasceu no Carmo (no interior do estado do Rio de Janeiro) em 1947 e aos seis anos já estudava piano. Após longa formação musical mudou-se para Paris onde estudou composição e análise com Nadia Boulanger (professora que teve entre os seus alunos nomes ilustres como os de Aaron Copland, Philip Glass, Astor Piazzolla ou Leonard Bernstein). Foi também seu professor Jean Barraqué, um discípulo de Schoen- berg e Webern. Foi depois de assimilada toda esta aprendizagem que lançou a curiosidade mais adiante, encontrando um caminho próprio acima das fronteiras dos géneros. Interessou-o o "choro", um género popular que definiria mais tarde como "a fundação" da música brasileira. E a guitarra entrou com outro protagonismo na sua vida a partir de 1973, numa época em que, ao mesmo tempo em que procurava um idioma seu, encontrava importantes pistas ao escutar a música de Bach, as gravações a solo de Baden Powell (o violinista brasileiro, entenda-se) e discos de Django Reinhardt e Jimi Hendrix. Deste último tirou uma conclusão formativa fundamental: a de que não há necessariamente diferenças entre a música "popular" e a música "séria", como o próprio descreveu.

Egberto Gismonti já gravava discos desde os finais dos anos 60. Mas é em 1977, com a ligação à ECM, que a sua obra ganha outra visibilidade global. Edita dois álbuns logo no primeiro ano ligado à editora, um deles (Dança das Cabeças) em parceria com Naná Vasconcelos e recebendo dois prémios. Ao longo dos anos, a dispersão de projectos em disco, para o palco e o cinema acentuaram a visão de horizontes invulgarmente vastos do músico. Além dos títulos que registou a solo gravou com, entre outros, Charlie Haden e Jan Garbarek. Produziu discos dentro e fora do Brasil. Assinou bandas sonoras para o grande e pequeno ecrãs. Fez música para teatro e bailado. Criou ainda peças para exposições de pintura e escultura. E abriu uma editora (a que deu o nome da sua cidade natal), essencialmente aberta à edição de música mais experimental. Ao longo dos anos correu entre instrumentos, da guitarra solista às grandes orquestras. E em todas as situações, captou na música que compôs todo um leque de vivências e experiências, traduzindo o seu aqui e o seu agora.