FANTASIA (1940)
A compra da Marvel pela Disney recoloca uma interrogação histórica e simbólica: até que ponto a especificidade do cinema se está a "dissolver" noutras áreas do entertainment? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 de Janeiro), com o título 'O encontro de Mickey com o Homem Aranha'.
Vivemos num universo saturado de “informação” económica: os elementos de natureza económica são frequentemente tratados como um revelador linear e incontestável, escamoteando muitos outros dados, de índole política, cultural ou simplesmente afectiva. O caso do cinema americano é particularmente significativo. Regra geral, só os números “grandes” são tratados com alguma evidência.
Assim, é muito fácil encontrarmos notícias sobre o facto de um blockbuster, por exemplo Transformers, ter custado qualquer coisa como 200 milhões de dólares. Porquê? Apenas porque é muito dinheiro e se traduz em “efeitos especiais”… O que quer dizer também que há um jornalismo infantil que ignora Chaplin, Kazan e Bergman, acreditando (ou fazendo acreditar) que o cinema só acontece quando vemos algum robot a partir alguma coisa… Entretanto, ninguém refere o facto de um filme como Julie & Julia, com Meryl Streep [foto], ter custado apenas 40 milhões. Porquê apenas? Porque Streep é uma grande estrela internacional e 40 milhões é um valor menos que mediano para os grandes estúdios de Hollywood.
Nesta ideologia economicista, ninguém se preocupa em fazer contas. É normal considerar-se uma grande proeza o facto de um blockbuster somar 400 milhões de receitas, esquecendo-se, entre outras coisas, que custou metade disso, que a campanha habitual para um filme desse género envolve um investimento pelo menos igual ao da produção, enfim, que uma percentagem significativa dessas receitas não vai directamente para o estúdio produtor, já que, naturalmente, fica com os exibidores.
Lembrei-me de todo este absurdo de cifrões e deduções ao ler a notícia da confirmação da compra da Marvel Entertainment pela Walt Disney Company. De facto, se fosse apenas pela grandeza dos números envolvidos, seria de esperar que fizesse manchetes em todo o mundo. Mas não, não parece haver muita gente interessada no assunto. E, no entanto, em reunião efectuada no último dia de 2009, os accionistas da Marvel aprovaram a venda da companhia (anunciada em Agosto). Valores envolvidos no negócio? Nada mais nada menos que 4,3 mil milhões de dólares, ou seja, um pouco mais que 3 mil milhões de euros!!!
Mais uma vez, não é apenas a grandeza nos números que faz a notícia, embora, convenhamos, seja pelo menos interessante observar que uma casa especializada em heróis de banda desenhada seja vendida a uma companhia de cinema por um montante que multiplica por sete o orçamento do Real Madrid para a época 2009/2010.
Em todo o caso, para além dos números, importa sublinhar que se reforça uma fundamental linha de força da história financeira e estética do cinema nas últimas duas décadas. A saber: o crescente envolvimento dos filmes com os heróis da banda desenhada (incluindo os seus derivados em formato de jogo de video). Na prática, Mickey vai coabitar com o Homem Aranha, Hulk e Capitão América. Vamos esperar para ver, mas esta aproximação de plataformas de negócio cujas raízes já não estão no cinema (e nos filmes), é suficiente para conjecturar a perda de identidade de um dos emblemas de Hollywood. Nem que seja por gosto especulativo, vale a pena perguntar: que pensaria Walt Disney [foto] desta aquisição?